terça-feira, 29 de novembro de 2022

 CICLO COMPLETO DE POLÍCIA: UMA CONTRIBUIÇÃO

Fonte da imagem: https://disparada.com.br/seguranca-publica-ciclo-completo-de-policia/


Há muito tempo se discute a adequação do modelo policial brasileiro. No âmbito dessa discussão, a dicotomia existente entre as atividades preventiva e repressiva, objeto da competência primordial de duas espécies policiais distintas, vem sempre à baila, como característica que entrava o resultado da atividade policial.

Nesta legislatura foi criada Comissão Especial destinada a discutir a adoção, para todas as polícias, da competência legal para investigação, que, embora não logrando resultado propositivo, malgrado o esforço de seus membros, as discussões ali havidas, disponíveis no site desta Casa[1], podem concretizar solução de consenso, nos termos desta PEC.

Ocorre que dadas as características do sistema de persecução criminal brasileiro e do modelo policial engendrado no decorrer da história e referendado pelo Constituinte originário de 1988, não é possível dotar, por ora, todas as polícias, da competência legal para investigação de forma plena ou indiscriminada.

Preliminarmente porque as competências pertinentes às polícias estão vazadas na Constituição Federal, para cuja alteração, nesse tocante, não convém se descure da adequação de outras particularidades inerentes aos órgãos de segurança pública – que não são apenas as polícias – pois elas se interpenetram inexoravelmente.

Assim, há outras situações igualmente importantes que constituem verdadeiros gargalos e devem ser solucionados de forma sistêmica, mediante alteração, primeiramente, do arcabouço constitucional e, a seguir, pela via do ordenamento jurídico de caráter infraconstitucional.

Como exemplos, não obstante se situarem fora do âmbito do escopo desta PEC, há vários outros temas que perpassam a discussão acerca do modelo policial adotado no Brasil. Há a questão da militarização das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares e de sua caracterização como forças auxiliares e reserva do Exército. Há a questão da dualidade policial no âmbito estadual e mesmo no âmbito federal, visto que o desenho comum em outros países é a existência de uma só polícia no âmbito territorial considerado, claro, com as exceções de sempre. Há a questão da adequação da carreira única e mesmo do cargo único. Há a questão das disparidades remuneratórias entre as polícias da União e dos Estados e mesmo entre as polícias do mesmo Estado. Há a discussão acerca da desvinculação das perícias oficiais de natureza criminal das estruturas policiais. Há o movimento visando à existência de verdadeiras polícias municipais. E assim por diante.

Todas essas questões desaguam numa questão macro que é a definição inequívoca de um modelo policial adequado à realidade brasileira, que atenda aos anseios da sociedade e seja pilar de sustentação das liberdades democráticas e do respeito aos direitos fundamentais.

Essas questões são objeto de discussão há muito tempo. Figuraram como temas centrais durante a realização da Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg), em 2009, primeira e única até então realizada. Estão presentes nos debates no Congresso Nacional no cotidiano das atividades legislativas, em especial na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO) desta Casa. Foram tema de demorado estudo concluído em 2018 pelo então Centro de Estudos e Debates Estratégicos (Cedes), órgão vinculado à Mesa.[2] Dele participaram parlamentares, autoridades e acadêmicos de renome, não tendo havido consenso acerca de qual é o modelo policial ideal para o Brasil. Houve, igualmente, uma Comissão Especial tratando do tema da unificação das polícias, cujo relatório final apontou, curiosamente, como solução, a possibilidade de criação de outras polícias.[3] Outra Comissão Especial tratou da Lei Orgânica de Segurança Pública, igualmente sem resultados efetivos.[4] Além disso, várias PEC e projetos de lei em tramitação buscam disciplinar a matéria, principalmente as apresentadas de 2014 em diante.

Todo esse histórico nos induz a recomendar o aprofundamento do debate e a considerar temerária qualquer alteração de monta que afete o sistema sem aprimorar ou redefinir o modelo.

Nos debates havidos a respeito percebeu-se, a exemplo da famigerada dicotomia que perpassa a existência de “duas meias polícias”, polícia civil (PC) e polícia militar (PM), igualmente um posicionamento característico ora a favor do ciclo completo – ou, no mínimo, da competência para elaboração do termo circunstanciado de ocorrência (TCO) – por parte da PM e, ao contrário, um posicionamento francamente desfavorável por parte da PC a respeito da extensão dessa competência à PM e aos demais órgãos de segurança pública.

Verifica-se um posicionamento bastante corporativista, em que nenhuma das partes parece querer ceder algo em favor da outra, numa espécie de disputa por poder, por espaço midiático ou por recursos de financiamento. Essa percepção é sentida, também, em relação a outros órgãos, por seus representantes ou os dos entes associativos de seus integrantes, qual seja, uma certa tendência a apoiar o ciclo completo por parte dos órgãos e entidades envolvendo integrantes do Ministério Público e por sua rejeição por parte dos órgãos e entidades envolvendo integrantes do Poder Judiciário. Quanto aos demais órgãos, ora são neutros, ora tendentes a apoiar a extensão do ciclo completo.

Voltando aos protagonistas da disputa, PC e PM, ambos os segmentos esgrimem argumentos, ora consistentes, ora fragmentários, a justificarem seu posicionamento. A favor, os principais são os seguintes:

1) exaurimento do modelo policial, incluindo o inquérito policial, vetusto, anacrônico, burocrático e ineficaz;

2) diferença de capilarização das unidades policiais das PM em comparação com as da PC, o que é bastante justificável, uma vez que guarnições da PM necessitam se deslocar, às vezes, por centenas de quilômetros, a fim de levar uma ocorrência à apreciação do delegado de polícia, o que gera custos desnecessários, ineficiência, desgaste da imagem dos órgãos policiais, devido ao deslocamento desnecessário da guarnição da PM, deixando a base de atuação sem policiamento;

3) existência da dicotomia de “duas meias polícias”, fenômeno supostamente existente apenas no Brasil e em Guiné Bissau, na contramão de exemplos de polícias de ciclo completo em todos os demais países; e

4) baixa resolutividade dos crimes pela PC, estando no Brasil por volta de 8%, enquanto a média mundial se situa em 60%.

Os principais argumentos contrários se resumem nos seguintes:

1) falta investimento para que a PC aumente a resolutividade, especialmente em termos de efetivo;

2) a extensão do ciclo completo só beneficiaria a PM, visto que a PC possui menor efetivo e não teria como absorver a prevenção em sua atividade;

3) a investigação exige formação adequada (graduação em Direito), não convindo que todos os soldados da PM, por exemplo, passassem a investigar e executar os atos inerentes sem a devida qualificação; e

4) a garantia do respeito aos direitos fundamentais dos investigados estaria comprometida, pela possibilidade de condução de procedimentos no “capô da viatura” ou no interior dos quartéis.

Ao refletir sobre cada ponto destacado – e relembramos, são apenas os principais, há outros – podemos inferir o seguinte, inicialmente no tocante aos favoráveis ao ciclo completo.

Quanto ao primeiro aspecto favorável, entendemos que o exaurimento do modelo, por si, não justificaria a expansão das competências próprias de uma agência policial à outra, à guisa de atualizar o modelo, uma vez que a alteração do modelo envolve inúmeros outros fatores a serem considerados.

O segundo aspecto está correto, pois embora presente em Estados de grande extensão ou com grande número de Municípios, a exemplo do Pará e de Minas Gerais, respectivamente, o menor efetivo das PC é comum em todos os Estados, o que gera a impropriedade apontada. Opcionalmente, os representantes da PC sinalizaram como solução a essa dificuldade com a unificação das polícias, tema não simpático à PM.

O terceiro aspecto, embora não se aponte um estudo exaustivo a respeito, no sentido de abranger, mesmo, todos os países, tende a fazer sentido, tendo por base as polícias dos países ditos centrais e de cultura ocidental. Requer, contudo, um adendo: mesmo nos países apontados como modelo, não há mais de uma agência policial de mesmo nível governamental atuando com a mesma competência sobre um mesmo território, exceto situações residuais. Donde, sob essa premissa, a extensão do ciclo completo, sem restrições, às PM e PC tenderia a redundar, em vez de economia de recursos e efetividade, em maior custo e problemas de coordenação. A opção a essa nova dicotomia, de “duas polícias completas” no mesmo território, em vez de “duas meias polícias” seria, justamente, a unificação, visto que é comum, nos países tidos como modelos, a existência de uma polícia nacional (ou federal), uma polícia estadual (provincial, regional, de condado) e uma polícia local (municipal), isto é, uma agência para cada nível de governo atuando sobre o mesmo território, segundo competências definidas.

O quarto aspecto, da baixa resolutividade, é polêmico, uma vez que não existe um mecanismo suficientemente confiável para mensurar tal resultado. Primeiramente, porque o nível de excelência de cada polícia estadual é muito variável, em razão de variadas circunstâncias. Em segundo lugar, uma média geral tende a considerar nichos de excelência, como a investigação de homicídios, geralmente com resultados expressivos, com o de outros crimes de difícil elucidação, como os de natureza patrimonial, especialmente o furto. Como exemplo, segundo Garland, a taxa média de delitos esclarecidos no Reino Unido na década de 1990 era de 4,9%, variando de 19% para ferimentos a 8,4% para roubos em domicílio e apenas 2% para vandalismo.[5]

Quanto aos pontos contrários à adoção do ciclo completo, entendemos, em relação ao primeiro aspecto elencado que, antes de investimento substancial em determinada área de política pública, em especial na área de segurança pública, é preciso integrar as forças, a fim de se obter ganho de escala. A diferença de efetivos entre polícias de feitio judiciário – essencialmente repressivas (investigativas) – e aquelas de manutenção da ordem pública – prioritariamente preventivas (ostensivas) – é comum, sendo as primeiras geralmente fração das segundas em termos quantitativos. Dessa forma, mesmo considerando o iter da persecução criminal, é mais produtivo e recomendável investir na prevenção que na repressão.

O segundo aspecto é corolário do primeiro, vez que se o efetivo da PC é insuficiente sequer para uma investigação de qualidade de todos os registros, menos ainda o será para eventual extensão da atividade de prevenção. É certo que a PC em geral possui seus órgãos de ‘prevenção’, as chamadas unidades especiais, mas que ocupam parcela mínima do efetivo e se voltam para espécies criminais muito específicas, como sequestros, além de atuar como apoio tático a operações policiais.

O terceiro aspecto significa que a carreira ou o cargo de delegado é de natureza jurídica, pelo menos no Brasil, pois todas as Unidades da Federação exigem para a investidura o bacharelado em Direito. Em algumas PC se exige atualmente, para a posse no cargo, experiência mínima em carreira jurídica, o que denota essa particularidade. Entretanto, é de se supor que um integrante da PM, independentemente do posto do oficial ou da graduação da praça, seria capaz de conduzir uma investigação policial. É o que ocorre, por exemplo, na hipótese de atuação como autoridade policial judiciária militar, presidindo o inquérito policial militar (IPM), cuja indicação, porém, sempre recai em um oficial e nunca numa praça. Compreendemos que com alguma capacitação e a normatização do ente federado no sentido de que o presidente do inquérito deva ser graduado em Direito se resolveria tal questão. A manutenção da exigência atual para investidura do delegado de polícia tenderia a conferir qualidade às investigações de grande porte ou de casos complexos, que continuariam a seu cargo.

O quarto aspecto demonstra temor da categoria dos delegados acerca da lisura dos procedimentos, tendo por suposição que a atividade policial militar é eivada da característica do combate ao inimigo, que seria inapropriada a uma atividade de controle social como o é a da manutenção da lei e da ordem. A essa invocação é contraposta a experiência de alguns anos de lavratura do TCO por PM de vários Estados, com relativo sucesso. O emprego de aparatos tecnológicos tende a tornar o procedimento mais célere e passível do devido crivo pelo controle interno e pelo controle externo da atividade policial.

Com espeque nessas considerações e ciente das limitações acima relacionadas, optamos por seguir iniciativas similares a outras situações havidas nesta Casa envolvendo temas complexos, diante da dificuldade de se oferecer uma solução definitiva. Trata-se da busca de soluções parciais, incrementais, que ensejarão, provavelmente, alterações futuras tendentes a modificar o modelo sem inflexões bruscas ou profundas antes que ocorra o exaustivo debate prévio.

Então, nesse primeiro momento, propomos alteração constitucional visando a definir para os órgãos de segurança pública uma competência secundária, além daquela competência primária já delineada. Essa competência secundária permitirá, à maioria dos órgãos de segurança pública, a realização do ciclo completo segundo alguns critérios. A par disso, incluímos dispositivo permitindo, de plano, que todos os órgãos elaborem o termo circunstanciado (TC ou TCO).

O formato sugerido visa à resolução de um problema real, mais urgente, sem afetar o funcionamento das polícias nem interferir negativamente na discussão dos demais pontos acima mencionados. Da mesma forma, não impõe despesas aos entes federados nem interfere em sua competência legislativa de dispor acerca das respectivas agências policiais.

Em razão do exposto, apresentamos a presente minuta de Proposta de Emenda à Constituição, que sintetiza nossa reflexão, no sentido de dotar de certa racionalidade algumas tarefas e processos a cargo do subsistema de segurança pública, componente que é do sistema de justiça criminal.

Ao tempo em que colocamos a minuta à disposição dos ilustres parlamentares, passaremos, a seguir, a apresentar a metodologia que nos conduziu na elaboração da minuta e ligeira explicação acerca de seus dispositivos.

Das principais PEC que abordam o ciclo completo, observamos, na PEC 89/2015, a previsão de duplicidade de polícia com ciclo completo na mesma base territorial. Essa medida não é recomendável visto que não existe esse modelo em qualquer outro país, pois é um contrassenso, no mínimo por ser antieconômico.

A PEC 127/2015 repete a duplicidade de polícia com ciclo completo na mesma base territorial, compreendendo as polícias militares (PM) e polícias civis (PC), nos Estados e Distrito Federal; e a polícia federal (PF), a polícia rodoviária federal (PRF) e a polícia ferroviária federal (PFF), no âmbito da União. A solução seria, a nosso ver, secundando vários especialistas que se pronunciam nesse sentido, definir a competência em razão da matéria (espécie do tipo penal, regime de cumprimento da pena, por exemplo), do território ou utilizando outro critério.

Conforme comentário anterior, visando a garantir a prosperabilidade de qualquer opção legislativa sobre o tema, o recomendável no momento, portanto, é promover mudanças pontuais, incrementais, no caso focando apenas o ciclo completo, sem abordar polícia única ou carreira única, por exemplo, tema objeto da PEC 423/2014.

De forma a atender a todos os segmentos interessados, foi proposto modelo conforme recomendação do Professor Luís Flávio Sapori, no sentido de que a solução apontada não seja de “soma zero”, quando, para alguém ganhar, outro tenha de perder. Acrescentamos que, embora a solução ideal não seja a de soma zero, talvez pudesse ser segundo uma relação “ganha-ganha”. Entretanto, se for impossível todos ganharem na mesma proporção, que algumas competências sejam preservadas, outras compartilhadas e, outras, ainda, estendidas segundo critérios claros.

Embora o subsistema de segurança pública, integrado ao sistema de Justiça criminal, abranja os diversos órgãos de segurança pública, é evidente que as policiais civis (PC) e polícias militares (PM) são os principais atores da persecução penal desse subsistema. Nessa perspectiva, a adoção do ciclo completo, desde suas formulações teóricas, visa à conformação das competências de tais atores principais. Então, uma das vertentes defendidas para a extensão do ciclo completo a ambas passa pela adoção de uma das seguintes opções: dos critérios da pena em abstrato, dos tipos penais específicos, da população dos Municípios em que atuem e outras variantes, como a de estendê-la apenas nas hipóteses de flagrante delito.

A utilização do critério da gravidade da pena tenderia a reservar os crimes apenados com detenção para as PM e os apenados com reclusão para as PC, por exemplo, segundo a tese, igualmente defendida, de que as PC devam priorizar a investigação dos crimes mais graves e mais complexos. A ideia dos tipos penais específicos sugere que os crimes patrimoniais e contra a pessoa ficassem com a PM e os demais com a PC. A dos níveis populacionais seguem a lógica do modelo francês, em que a Gendarmerie, equivalente à PM, atua nos pequenos municípios, e a Police Nationale, semelhante à PC, nos maiores.

Entendemos que não convém adotar a divisão da competência por esses critérios, ao dotar órgãos de natureza preventiva da competência repressiva e vice-versa. Como denotação da dificuldade que daí surgiria, exemplificamos com os crimes apenados com detenção e os apenados com reclusão, um dos critérios aventados. É que no cotidiano da PM, por exemplo, é comum se deparar com crimes apenados com reclusão, como o roubo e o homicídio. A divisão por grupo de tipos penais específicos, considerando o bem jurídico protegido, como os delitos patrimoniais, igualmente não comporta uma divisão unívoca, pois há vários delitos patrimoniais cuja apuração envolve elevada complexidade. O mesmo ocorre com os crimes contra a pessoa, sendo que a investigação do homicídio, por exemplo, é uma das ilhas de excelência nas unidades especiais da PC, como delegacias de homicídio (DH) e também de proteção à pessoa (DHPP), expertise que não pode ser desprezada e que levaria décadas para ser atingida pela PM. Noutro compasso, a divisão por critério populacional, embora de fácil implementação, visto que as PM possuem maior capilaridade, tornaria impossível à PC adaptar sua estrutura para a atividade preventiva nos grandes centros.

Dessa forma, ao longo da proposta, alinhavamos um modelo misto de ciclo completo baseado na natureza dos órgãos, se preventivos ou repressivos; e no âmbito da sua atuação preponderante, se territorial, viário ou edilício.

Quanto à competência, preservamos aquela ora existente, que denominamos de ‘primária’, criamos uma “competência secundária” para a extensão do ciclo completo e, ainda, uma “competência prorrogada”, a fim de atender às situações em que não haja, no Município, o órgão dotado da competência primária, de forma a não deixar certos crimes sem investigação pela inexistência, no local, do órgão primariamente competente.

As particularidades do modelo podem ser mais bem avaliadas pela análise concomitante dos dispositivos pertinentes, a seguir analisado.

Com respeito ao proposto § 5º-B, a ser incluído no art. 144, foi inserida a caracterização dos órgãos de segurança pública por natureza e âmbito de atuação, o que favorece a elaboração e imediata compreensão dos enunciados dos incisos do art. 144-A, ora incluído e do art. 3º da PEC.

Assim, são considerados como:

1) de natureza judiciária e repressiva e âmbito territorial, os órgãos referidos nos incisos I e IV do caput do art. 144 (polícia federal e polícias civis);

2) de natureza preventiva e âmbito viário, os referidos nos incisos II e III do caput e no § 10 do art. 144 (polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal e agentes de trânsito);

3) de natureza preventiva e âmbito territorial, os referidos no inciso V do caput e no § 8º do art. 144 (polícias militares e guardas municipais); e

4) de natureza preventiva e âmbito edilício, os referidos no inciso VI do caput do art. 144 (polícias penais), nos art. 27, § 3º, art. 51, inciso IV e art. 52, inciso XIII (polícias legislativas estaduais, polícia legislativa da Câmara dos Deputados e polícia legislativa do Senado Federal).

Foi feita referência à natureza judiciária das polícias federal e civis, visto que executam, tradicionalmente, as funções de polícia judiciária, isto é, cumprimento das decisões e mandados judiciais, competência que não convém, obviamente, estender a todos os demais órgãos. Entretanto, mesmo essa competência é prorrogada em favor do órgão que atue segundo sua competência secundária e em favor das polícias militares onde não houver efetivo da polícia civil, como será visto adiante. Não obstante, subsiste o caráter de polícia judiciária militar para as polícias militares e corpos de bombeiros militares, conforme previsto no Código de Processo Penal Militar (CPPM), embora não seja empregada tal terminologia na referência genérica a tais órgãos. Não se empregou na terminologia o vocábulo ‘investigativo’, mas ‘repressivo’ em relação às polícias de âmbito civil (PF e PC), visto que outros órgãos não policiais também detêm a prerrogativa de investigar e, ainda, para reforçar o sentido de sucessão temporal ao caráter ‘preventivo’.

Além dessas polícias (PF e PC), de natureza também repressiva e âmbito territorial, primariamente, as demais são de natureza preventiva, também no tocante à competência primária, sendo de âmbito viário a PRF, a PFF e os agentes de trânsito; de âmbito territorial a PM e a guarda municipal (GM); e de âmbito edilício, as polícias penais e legislativas.

A inclusão do art. 144-A, define as competências secundárias dos órgãos, para além de suas competências primárias definidas no art. 144 e nos atos normativos dos entes instituintes, como é o caso das polícias legislativas. Entretanto, tal competência é facultativa e deve ser estabelecida por lei (federal, estadual ou municipal) ou por resolução (casas legislativas). Esse cuidado é essencial, para que o ente federado não se veja coagido a adotar um determinado modelo sem que para isso haja condições econômico-financeiras e mesmo de conveniência política ou administrativa.

Além disso, tal competência secundária só é deferida se o fato ocorrer durante o exercício da competência primária, que permanece a mesma atualmente definida na Constituição e nos atos normativos infraconstitucionais, ressalvada a hipótese da competência prorrogada, objeto do art. 3º da PEC, que analisaremos adiante.

A competência secundária passa a ser, portanto, uma faculdade (podem) a ser exercida pela União, pelo Estado/DF e pelo Município, que devem legislar a respeito se optarem por esse modelo. Não há prazo para o exercício de tal faculdade e é reversível, por evidente, se a iniciativa não der o resultado esperado ou, pior que isso, resultar em algo inverso ao pretendido. Se em vez de facultar, se mantivesse o texto como ‘realizarão’ (a exemplo da PEC 431) ou “devem exercer”, conforme a regra comum da técnica legislativa para prescrições coercitivas, tal comando constitucional seria cogente, devendo todas as polícias exercer tais competências secundárias. Entretanto, ao estender a prevenção às PC (inciso I), por exemplo, que geralmente detêm efetivo de pessoal inferior ao das PM, é evidente que não teriam condições de prevenir todos os crimes, mas apenas aqueles vislumbrados “durante o exercício de sua competência primária”. O emprego dessa última expressão evita, ainda, para todos os órgãos, que haja desvio de finalidade.

O conceito de competência secundária foi inspirado pelo artigo “A polícia de ciclo completo se impõe como condicionante para que a elucidação de crimes atinja índices minimamente aceitáveis no Brasil” de autoria do Deputado Federal Subtenente Gonzaga, que à pág. 9 pontua: “1. Privilegiar a essência originária da função constitucional de cada agência de Polı́cia; (a essência originária da Polı́cia Civil e Federal é investigar; da PRF é policiar as rodovias; das Polı́cias Militares é o policiamento ostensivo e preservação da ordem pública; Do Corpo de Bombeiros é prevenção e salvamento; das Guardas Municipais é proteção patrimonial dos municı́pios, da Polı́cia Penal é a custódia de presos)”.

Assim, a competência secundária passa a ser de prevenção de infrações penais em geral, pelos órgãos de natureza repressiva, segundo o intuito de favorecer todas as corporações com algum ganho.

A repressão de infrações penais em geral, desde que cometidas em razão da utilização da via de tráfego, é deferida aos órgãos de âmbito viário. A condicionante “em razão da utilização da via de tráfego” impede o que ocorre atualmente com a PRF, por exemplo, que executa operações conjuntas fora do âmbito de sua competência, como a recente perseguição ao homicida Lázaro Barbosa, ocorrida em estradas vicinais do Distrito Federal e de Goiás.

Outra competência secundária estende a repressão de infrações penais em geral às PM. No caso das GM, elas já detêm a competência para a execução da prisão em flagrante de todas as infrações penais, só não podem elaborar o respectivo auto de prisão em flagrante (APF) nem adotar as providências decorrentes. Essa atribuição continua com a PF, PC ou PM, nesse último caso, em decorrência da competência secundária ou da competência prorrogada. Assim, ao prender alguém em flagrante, cabe à GM encaminhar a lavratura do APF à PC ou à PM, conforme o caso. Optamos por essa forma porque pouquíssimas GM teriam condições de estruturar um ambiente cartorário e prover treinamento para tal mister.

Ficou assim definida a competência secundária dos órgãos de âmbito territorial: 1) prevenção de todas as infrações penais, durante o exercício de sua competência primária, pelas PF e PC, que já podem reprimir todas (investigação e prisão em flagrante); e 2) repressão (investigação e prisão em flagrante) de todas as infrações penais, durante o exercício de sua competência primária, pelas PM, que já podem prevenir todas. As GM já possuem, portanto, a competência para a execução da prisão em flagrante de todas as infrações penais, durante o exercício de sua competência primária.

Neste caso se vislumbra saudável ‘competição’ entre PM e GM, no caso das prisões em flagrante (toda pessoa pode prender em flagrante). E entre a PC e PM, para lavratura do auto. Ainda que haja certa seletividade da PM quanto a lavrar, ou não, determinado auto – já que esta é uma competência primária da PC –, tal seletividade chega a parecer natural. Em razão da complexidade e especificidade, inclusive quanto a eventual esclarecimento adicional posterior, necessidade de exames preliminares de constatação, além das hipóteses de conexão e continência, e de outras dificuldades encontradas, é razoável que a PC assuma tais casos. Nessa perspectiva, a realidade fática se encarregaria de efetuar a divisão de tarefas entre PM e PC quanto à apuração das infrações penais, ficando a PC residualmente encarregada dos casos mais complexos.

Noutro aspecto prático, é também favorável à sociedade que a GM leve o caso àquela corporação (PC ou PM) que se encontre menos assoberbada de procedimentos similares. Não acreditamos que, na ânsia de “mostrar serviço”, haja uma queda do nível de trabalho em qualquer dessas corporações, visando a trocar qualidade por volume, pois essa eventual queda afetaria a credibilidade do órgão e mesmo a efetividade do sistema de justiça criminal do qual é componente.

Entretanto, o dispositivo baliza a atuação de todos os órgãos em função da competência primária, isto é, o órgão não deve ficar procurando flagrantes em situações alheias à sua competência, o que, aliás, caracterizaria desvio de finalidade.

No caso dos órgãos de âmbito edilício, tendo em vista que já possuem competência de natureza preventiva, é acrescida a de natureza repressiva de infrações penais em geral, ocorridas na esfera de sua atuação, exceto quanto a agente com prerrogativa de foro. Tratam-se de polícias de outro poder (polícias legislativas) ou de atuação restrita (polícias penais), sendo aconselhável que possuam, pois, a competência repressiva. Ressalva-se a atuação quanto aos agentes com prerrogativa de foro, cuja competência pode ser da polícia federal, por exemplo, ao executar um mandado de busca no gabinete do parlamentar. Além disso, tal dispositivo espanca a controvérsia acerca de a competência nesses edifícios ser da polícia federal (Congresso), da polícia civil (demais casas legislativas) ou de ambos (estabelecimentos penais), no âmbito repressivo e de polícia judiciária.

Quanto aos corpos de bombeiros militares, lhes é conferida como competência secundária a repressão das infrações penais em flagrante afetas às respectivas competências primárias. Assim estabelecemos, porque não cabe estender aos bombeiros a competência secundária repressiva plena deferida às PM, sob pena de total desvio de finalidade. Naqueles corpos de bombeiros ainda vinculados às PM, a competência reduzida seria restrita, portanto, aos segmentos pertinentes.

Compondo o corpo da PEC, sem integrar o texto articulado da Constituição, porém dotados de plena eficácia constitucional, inserimos três artigos.

O art. 2º estabelece que a competência é definida em favor do órgão cujo agente for o primeiro a executar qualquer ação pertinente ao tomar conhecimento do fato ou comparecer ao local da infração penal, no exercício da competência primária ou da secundária prevista no art. 144-A, eventualmente incluído pela Emenda Constitucional. Esse dispositivo institucionaliza a figura do “primeiro policial”, cuja presença no local da infração penal servirá para definir a competência do órgão, seja ela primária ou secundária.

O dispositivo ressalva duas situações contidas nos incisos I e II: 1) a hipótese de conexão e continência em relação a infração penal em apuração por outro órgão, que é uma regra presente no ordenamento penal adjetivo; ou 2) a necessidade de investigação que envolva complexidade, a critério do Ministério Público, que deve encaminhar o caso ao órgão competente.

Seu parágrafo único estabelece que no exercício da competência secundária de caráter repressivo os órgãos referidos devem atuar em coordenação com o Ministério Público, a ele encaminhando os autos, independentemente da sua forma de instrumentalização, com as pessoas e objetos envolvidos. Tal redação mantém o controle da atividade investigativa atual da PF e PC (competência primária) com o Poder Judiciário – sem a necessidade de se alterar o Código de Processo Penal – e passa para o MP tal controle nas competências investigativas secundárias (demais órgãos), atendendo à ideia contida na PEC 431/2014.

O art. 3º define a “competência prorrogada”, que consiste na seguinte regra: no Município em que não haja segmento da corporação primariamente competente de âmbito territorial é prorrogada a competência em favor da existente, com preferência para aquela pertencente ao mesmo ente instituinte ou para a de competência primária afim de menor abrangência geográfica. O dispositivo permite que a PC exerça a competência da PF (órgão afim), que a PM exerça a competência da PC (órgão do mesmo ente), que a PC exerça a competência da PM (órgão do mesmo ente) – situação menos factível – e que a GM exerça a competência da PM (órgão afim). Menor abrangência geográfica é a situação da PC em relação à PF; ou da GM em relação à PM. Essa regra é pertinente porque não faria sentido a PF assumir a competência da PC ou a PM assumir a da GM, pois o conceito de “prorrogação de competência” significa evoluir da competência de um órgão que a detém de forma mais restrita para a equivalente à de outro órgão que a detém de forma mais abrangente. A prorrogação da competência utiliza o critério espacial, embora essa competência prorrogada continue circunscrita à competência territorial originária. Não convém incluir nessa modalidade de competência prorrogada os órgãos de caráter edilício, pois sua competência é plena e a ressalva da prerrogativa de foro já tem assento constitucional.

O § 1º do art. 3º estende a aplicabilidade do disposto no caput aos órgãos de âmbito viário entre si. Dada a dificuldade de incluir no caput os órgãos de âmbito viário, pois o locus de exercício é diverso (rodovias federais, PRF; ferrovias federais, PFF; rodovias estaduais, PMRv; vias urbanas, AgTran), além do que poderia ser confundida sua competência prorrogada como válida também em relação aos órgãos de âmbito territorial, esse parágrafo único resolve a questão.

O § 2º do art. 3º prorroga a competência, ainda, para todos os órgãos referidos nos art. 27, § 3º, art. 51, inciso IV, art. 52, inciso XIII e art. 144, e seus parágrafos, da Constituição Federal, para além do âmbito territorial, viário ou edilício originário, conforme o caso, na hipótese de flagrante delito. Essa previsão favorece a situação de flagrante em perseguição, sem a qual bastaria o infrator atravessar a divisa do Estado ou os limites do Município para escapar à ação repressiva imediata.

O art. 4º propõe solucionar a celeuma da autorização para lavratura do termo circunstanciado, que hoje vigora à margem da lei, à força de decisões judiciais. Dispõe o referido artigo que sem prejuízo e independentemente do disposto no art. 144-A, incluído pela eventual Emenda, isto é, a faculdade de exercício das competências secundária e prorrogada, todos os órgãos nele mencionados e seus respectivos agentes são competentes para a prevenção e repressão aos crimes de menor potencial ofensivo. Esse dispositivo permite, sem possibilidade de discussões acerca da constitucionalidade ou legalidade, que todos os órgãos de segurança pública elaborem o TC (ou TCO). Igualmente todos seus integrantes da atividade-fim passam a ficar aptos a elaborar o TC, como os policiais, os militares e os guardas (sintetizado no vocábulo ‘agentes’). Essa extensão engloba os agentes da polícia civil, para equipará-los à situação autônoma das praças da PM, por exemplo, não dependendo da eventual determinação ou autorização do delegado de polícia para tanto, bastando seguir os procedimentos dos normativos internos pertinentes e, assim como as praças em relação aos oficiais, suas ações estariam igualmente sujeitas ao controle hierárquico.

Por fim, a cláusula de vigência imediata visa a permitir que os Estados e Municípios que o desejarem possam adotar o novo modelo dos órgãos de segurança pública em prazo menor, legislando a respeito, se tiverem condições para isso.

Apresentamos, abaixo, quadro resumido comparando a competência primária atual com as competências secundária e prorrogada ora estabelecidas:

QUADRO COMPARATIVO DAS COMPETÊNCIAS PRIMÁRIA, SECUNDÁRIA E PRORROGADA

Órgão

Competência

Controle

da investigação

Atual

Sugerida

Competência

Primária

(mantida)

Competência

Secundária

(sugerida)

Primária

Secundária

[art. 144-A]

Prorrogada

 [art. 3º]

I - polícia federal

Repressão de infrações penais sujeitas à Justiça Federal

Prevenção de infrações penais

-

Poder

Judiciário

-

II - polícia rodoviária federal

Prevenção de infrações penais nas rodovias federais

Repressão de infrações penais em função da via de tráfego

Da PFF (afim e mesmo ente)

-

Ministério Público

III - polícia ferroviária federal

Prevenção de infrações penais nas ferrovias federais

Repressão de infrações penais em função da via de tráfego

Da PRF (afim e mesmo ente)

-

Ministério Público

IV - polícias civis

Repressão de infrações penais sujeitas à Justiça estadual/DF

Prevenção de infrações penais

Da PF (afim);

Da PM (mesmo ente)

Poder

Judiciário

-

V - polícias militares [e corpos de bombeiros militares]

Prevenção de crimes em geral

[PCI e defesa civil]

PM: Repressão de infrações penais

(Vide CBM abaixo)

PM: Da PC (mesmo ente);

PMRv:

- Da PRF (afim);

- Dos AgTran (afim e mesmo ente)

-

Ministério Público

VI - polícias penais federal, estaduais e distrital

Segurança dos estabelecimentos penais (prevenção edilícia)

Repressão de infrações penais (edilícia), salvo prerrogativa de foro

-

-

Ministério Público

Polícia do Senado

(art. 52, XIII)

Prevenção de infrações penais (edilícia)

Repressão de infrações penais (edilícia), salvo prerrogativa de foro

-

-

Ministério Público

Polícia da Câmara

(art. 51, IV)

Prevenção de infrações penais (edilícia)

Repressão de infrações penais (edilícia), salvo prerrogativa de foro

-

-

Ministério Público

Polícia dos Legislativos estaduais   (art. 27, § 3º)

Prevenção de infrações penais (edilícia)

Repressão de infrações penais (edilícia), salvo prerrogativa de foro

-

-

Ministério Público

Corpos de bombeiros militares

Prev. e combate a incêndios e defesa civil

Repressão de infrações penais afetas à competência primária

-

-

Ministério Público

Guardas municipais (art. 144, § 8º)

Proteção de bens, serviços e instalações

Repressão de infrações penais em flagrante

Da PM (afim)

-

Ministério Público

Agentes de trânsito (art. 144, § 10)

Segurança das vias públicas urbanas

Repressão de infrações penais em função da via de tráfego

Da PMRv (mesmo ente e afim)

Da PRF (afim)

-

Ministério Público


Diante do exposto, convidamos os ilustres pares a votarem conosco, pela aprovação da presente proposição.

Sala da Comissão, em        de                     de       .



[2] O estudo resultou na publicação Segurança Pública: prioridade nacional. Disponível em: <https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/36679>.

[5] GARLAND, David. As contradições da “sociedade punitiva”: o caso britânico. Revista de Sociologia e Política, n. 13, p. 59-80, nov. 1999. Confira-se no mencionado estudo “Segurança Pública: prioridade nacional”, p. 201.

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