terça-feira, 20 de novembro de 2018






REFORMA POLÍTICA NO BRASIL: O DILEMA DA PROPORCIONALIDADE
Claudionor Rocha[1]
Introdução
O sistema político-eleitoral brasileiro é tido como uma das causas da difícil governabilidade e outros problemas conexos, como a corrupção e a impunidade vinculadas ao exercício de mandatos eletivos.
Vez por outra a reforma política é lançada como panaceia para a resolução de tais problemas. Entretanto, não obstante as tentativas recentes, uma reforma em nível amplo não se conseguiu lograr, talvez devido à complexidade do tema, talvez por consistir em ideia lançada à guisa de remédio a solucionar todos os males.
O presente trabalho analisa a situação atual, as tendências surgidas no meio político e as discussões havidas na sociedade civil a respeito do tema, concluindo, afinal, que qualquer que seja o modelo de reforma político-eleitoral, o primeiro problema a ser resolvido é a questão da desproporcionalidade.
Qual reforma política?
Quando se discute reforma política vem à mente o sistema político, como gênero e os subsistemas partidário e eleitoral, que integram aquele, como espécie. As sugestões mais polêmicas em geral abordam alterações no sistema eleitoral[2].
As bases fundamentais do sistema político como um todo estão assentadas no regime democrático conquistado, além da forma de governo republicana e do sistema presidencialista, perenizados com o plebiscito de 1993, que confirmou o disposto na Constituição de 1988.
Quanto ao sistema partidário, suas bases estão igualmente instituídas constitucionalmente e, embora seja tido como frágil, parece haver-se adaptado ao sistema eleitoral. Entretanto, subsistem críticas de que os partidos brasileiros, se bem que coesos na arena parlamentar, não são muito disciplinados e chegam a ser até pouco relevantes na arena eleitoral.
Para apreender o sistema eleitoral, é preciso lembrar que o Brasil é um Estado federativo, sendo o Poder Legislativo bicameral no âmbito federal (Congresso Nacional), composto pela câmara alta, Senado Federal, que representa paritariamente as unidades federadas, com três senadores cada; e pela câmara baixa, a Câmara dos Deputados, que representa proporcionalmente as populações das unidades federadas, com oito a setenta deputados num total de 513. É unicameral nos entes federativos subnacionais de primeiro nível – Estados e Distrito Federal – e nos de segundo nível, os Municípios.
A eleição para os cargos do Poder Executivo e para o Senado Federal é majoritária, enquanto para a Câmara dos Deputados e os órgãos do Poder Legislativo dos 26 Estados (Assembleias Legislativas), do Distrito Federal (Câmara Legislativa) e dos 5.570 Municípios (Câmara de Vereadores) é proporcional.
Os mandatos são de quatro anos – salvo para o Senado, de oito – e coincidentes, exceto no nível municipal em que tanto os prefeitos, chefes do Poder Executivo, quanto vereadores, são eleitos dois anos depois dos demais cargos eletivos. Assim, a cada dois anos há eleições, nos anos pares.
O número de deputados estaduais – distritais, no Distrito Federal – está atrelado ao de federais do ente considerado, em número maior e relativamente proporcional, enquanto o dos vereadores é progressivo segundo a população, tudo conforme regras constitucionais (arts. 27, 29, 32, 45 e 46).
Não há sistema eleitoral perfeito, mas sistemas diferentes. O caso brasileiro é sui generis, pois combina sistema presidencialista com voto proporcional de lista aberta. Disso decorre o favorecimento ao multipartidarismo, que requer arranjos entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo, visando a garantir a governabilidade, o que se logra obter mediante o chamado presidencialismo de coalizão[3], em que o Presidente plebiscitário aloca recursos políticos e financeiros para formar sua base majoritária no Congresso Nacional.
Os sistemas eleitorais são concebidos, portanto, visando a dois objetivos principais: assegurar a governabilidade e garantir a representatividade. Para se atingir o primeiro desiderato a escolha recai no sistema majoritário ou pluralista, enquanto o ideal para a consecução do segundo é o sistema proporcional.
Assim, dentre os sistemas existentes o mais aclamado é o adotado na Alemanha, proporcional-majoritário e popularmente chamado ‘distrital-misto’, o qual combina características dos dois sistemas.
Desta forma se obtém elevado grau de proporcionalidade, isto é, representatividade, bem como se reduz os partidos efetivos para três principais, o que favorece a obtenção, pelo Poder Executivo, da necessária maioria no Congresso para implantar as políticas públicas necessárias.
Esse é o sistema preferido pela maioria dos brasileiros que discutem o tema, mas sua adoção, além de improvável, supostamente não traria soluções imediatas para os problemas para os quais ele é tido como panaceia. Isso porque outras alterações são igualmente importantes. Assim, além das discussões acerca do ‘perigo’ da adoção do sistema majoritário, popularmente chamado de ‘distrital puro’, há o problema conexo da forma de financiamento das campanhas eleitorais[4].
Então já se propôs a adoção do ‘distritão’, que seria a adoção do voto majoritário considerando o ente federado como um único distrito plurinominal, isto é, seriam eleitos os candidatos mais votados, simplesmente. Esse formato, porém, não traz proporcionalidade, visto que alija as minorias da alocação das vagas.
Qualquer forma de sistema majoritário induz, ainda, à especulação acerca do gerrymandering[5] que passaria a ocorrer, em prejuízo da chamada ‘justiça eleitoral’.
A discussão acerca do financiamento de campanha oscila entre o financiamento exclusivamente privado e o exclusivamente público, sendo que a forma mista atual também não agrada[6]. O financiamento exclusivamente privado praticamente excluiria os candidatos sem acesso ao poder econômico, elitizando a competição[7]. O exclusivamente público não resolveria o problema do ‘caixa dois’ e da corrupção que engendra[8]. O financiamento privado limitado poderia impor quantias máximas a serem doadas por pessoas jurídicas, podendo associá-la a doações de pessoas físicas, também limitadas, a exemplo do sistema utilizado nos Estados Unidos da América. No entanto, esse modelo não excluiria o caixa dois quanto às pessoas jurídicas, assim como favoreceria os partidos tidos como de esquerda no espectro ideológico, haja vista seus militantes contribuírem historicamente com uma espécie de ‘dízimo’ para o partido.
O maior problema, contudo, parece estar associado ao hermetismo induzido pelas regras constitucionais e infralegais que dispuseram acerca do número de representantes por ente federado. Por mandamento constitucional, na Câmara dos Deputados devem estar representados os habitantes dos Estados e do Distrito Federal, de forma proporcional às respectivas populações (art. 14). A Lei Complementar nº 78, de 30 de dezembro de 1993 inovou ao prever que a bancada total não pode ser aumentada, complementando o absurdo disposto no § 2º do art. 4º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que assegurou sua irredutibilidade[9].
O que incrementa a desproporcionalidade existente no sistema de lista aberta de voto transferível uninominal adotado no Brasil é a possibilidade de coligação partidária em que apenas a votação individual é que conta no resultado dos partidos coligados, além da adoção do cálculo de alocação das vagas não distribuídas pelo quociente eleitoral conforme as maiores médias e não as maiores sobras dos votos[10].
A solução para propiciar efetiva proporcionalidade entre votos e vagas obtidas pelos partidos deveria considerar o crescimento relativo das populações dos Estados, o que implicaria alteração constitucional e legal a respeito. Ademais, para dar tratamento equânime a um sistema assimétrico de difícil reajustamento, seria preciso não haver a limitação do mínimo de oito e do máximo de setenta representantes por unidade federada[11].
Na discussão acerca de qual é o sistema ideal, contudo, algumas questões devem ser postas. O foco do que é mais importante, segundo Nicolau (2003, p. 202), varia entre: 1) reduzir o número de partidos, criando condição de governabilidade, ou deixá-los livres, para adequada representação das minorias; 2) corrigir as distorções de proporcionalidade; 3) aumentar o controle do partido ou do eleitor sobre quais candidatos serão eleitos; ou, ainda, 4) ampliar a vinculação do representante com uma área geográfica.
A desproporcionalidade existente atualmente derivou da transformação, em Estados, dos ex-Territórios do Amapá e Roraima e da criação do Estado do Tocantins durante a Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988. Na ocasião aumentou-se de sessenta para setenta o máximo de deputados por unidade federada e estabeleceu-se o mínimo de oito. Havendo um incremento de quatro deputados a mais de cada ex-Território e oito de Tocantins, perfez-se na ocasião o total atual de 503 deputados federais.
A mencionada LC nº 78/1993 estipulou que "o número de deputados federais não ultrapassará quinhentos e treze representantes", com base em dados populacionais do ano anterior às eleições. Ajustando o disposto na Constituição, contemplou mais dez deputados pelo Estado de São Paulo, regra adotada já no pleito seguinte (1994).
No estágio atual, ao se considerar o máximo e o mínimo, dadas as distorções existentes, aparecem os fenômenos da sub-representação dos Estados mais populosos e da super-representação dos menos populosos, cujo número de habitantes nenhuma influência exerce sobre o cálculo, a não ser o de criar novas distorções, ao se incluir ou não as referidas populações, para o cálculo dos demais[12].
Devido a essa dificuldade, diante da omissão do Poder Legislativo no sentido de adequar o número de representantes conforme a população (art. 45, § 1º), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tentou estabelecer referido número por meio da Resolução nº 23.389, de 9 de abril de 2013, a qual foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5130-DF, impetrada pela Câmara dos Deputados. Paralelamente o Congresso Nacional editou o Decreto Legislativo nº 424/2013, declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 33/2014.
O problema apontado vislumbra dificuldade intransponível na eventual fusão ou desmembramento de Estados – ressalvada a hipótese de lei casuística para solucionar a questão – restando indefinido se haveria aumento da bancada resultante de fusão ou redução da do Estado original ao desmembramento (TSE, 2014).
Um conceito importante nessa discussão é a magnitude, que significa o número de representantes a serem eleitos pelo distrito. Nos sistemas majoritários a magnitude é igual a um, geralmente (distritos uninominais)[13]. Nos demais é necessariamente maior que um, podendo variar, de baixa a média ou alta magnitude (distritos binominais, plurinominais)[14]. Quanto maior a magnitude dos distritos, maior a proporcionalidade.


Sistema majoritário
Os objetivos principais do sistema majoritário são respeitar a decisão do cidadão, pela eleição dos candidatos mais votados, bem como assegurar maioria parlamentar suficiente para facilitar a governabilidade. A eleição pelo sistema majoritário, segundo a classificação proposta por Nicolau (2004, p. 12) pode dar-se por maioria simples, por maioria absoluta ou pelo voto alternativo.
Pelo método de maioria simples, são eleitos os candidatos que obtiverem as maiores votações. Esse sistema é conhecido no Brasil como ‘voto distrital puro’. Há países que exigem a inscrição de um suplente, que substituirá o eleito que não puder assumir ou continuar o mandato, mesmo para os cargos do Poder Legislativo. Para os cargos do Poder Executivo geralmente o candidato é eleito com um vice. No Brasil, para o Senado são eleitos dois suplentes para cada senador.
As vantagens do método são: o estímulo a uma relação mais estreita entre o representante e o eleitor e a possibilidade de obtenção de partidos majoritários no parlamento, ou seja, favorece o bipartidarismo, circunstância que facilita a governabilidade. É o que ocorre nos Estados Unidos da América e no Reino Unido, por exemplo, onde os respectivos parlamentos são praticamente bipartidários.
Um suposto defeito, apontado pelos adversários da proposta de adoção desse método no Brasil é que os deputados federais eleitos pelos distritos passariam a ser vistos como meros vereadores federais, dada a importância com que tratariam apenas seu reduto eleitoral. Entretanto mesmo no atual sistema proporcional se observa a vinculação do deputado a uma base territorial restrita, o que pode ser percebido por ocasião da apresentação de emendas orçamentárias, em que o parlamentar busca beneficiar prioritariamente sua base eleitoral.
Como dito acima, para a eleição majoritária dos cargos ao Poder Legislativo alguns países preveem a inscrição de um suplente em cada distrito, que assumiria no lugar do titular. Outras sugestões são a de os candidatos não eleitos nos demais distritos serem os suplentes, o que vai contra a lógica, que é o candidato residir no distrito. Outra opção seria a de os candidatos não eleitos na lista figurarem como suplentes natos, o que também não atende à lógica citada. Os mais radicais propõem que o segundo candidato mais votado assuma, o que interfere, porém, na proporção partidária. A melhor opção, portanto, parece ser a realização de nova eleição.
Sistema proporcional
O funcionamento da representação proporcional de lista depende de vários fatores, como a fórmula utilizada para distribuição das cadeiras, a magnitude dos distritos, o nível de alocação das cadeiras (nacional ou circunscricional), a existência ou não de cláusula de bloqueio (Sperrklausel, em alemão) ou de exclusão (chamada popularmente, no Brasil, de ‘cláusula de barreira’)[15], as regras para seleção dos candidatos eleitos de cada lista, e a possibilidade de os partidos se coligarem para a disputa[16].
A cláusula de exclusão é o estabelecimento de um piso de votos, tanto nacionalmente quanto no distrito, a fim de impedir a proliferação de partidos de pouca expressão. A justificativa contra a existência de inúmeros partidos é que, além de dificultar a composição de uma base coesa de sustentação ao governo no parlamento, tal situação cria dificuldade na distribuição de verbas eleitorais e de franquia publicitária (horário gratuito na TV e no rádio). Favorece, ainda, a existência de conchavos e o ‘aluguel’ de partidos chamados ‘nanicos’, aos partidos maiores, em troca de favores políticos, comprometendo a lisura dos pleitos, o fortalecimento das instituições políticas e a própria governabilidade.
Outra forma de garantir a proporcionalidade é a adoção de níveis diferentes de alocação. Assim, em alguns países, como na Alemanha, além da distribuição das cadeiras nos distritos, as cadeiras proporcionais são distribuídas nacionalmente, conforme a votação total dos partidos. No tocante à seleção dos candidatos eleitos de cada lista, depende do tipo de lista adotada. No Brasil vigora a lista aberta de voto transferível uninominal, sem a possibilidade de o eleitor influir na escolha do voto transferido.
Para que os partidos menores possam vencer o quociente eleitoral se permitem as coligações, ou seja, lançamento de candidaturas por vários partidos reunidos. As propostas de reforma política em tramitação no Brasil sugerem a criação de federações de partidos, que os vinculariam por quase toda a legislatura, de modo a coibir as coligações oportunistas, sendo alternativa ao estabelecimento da cláusula de exclusão[17].
Ao contrário dos demais países que adotam a lista aberta (Chile, Finlândia e Polônia), no Brasil são os candidatos mais votados das coligações os eleitos e não de forma proporcional aos votos obtidos pelos partidos. Isso gera distorções que poderiam ser evitadas limitando-se as coligações apenas às eleições majoritárias ou alterando-se a forma de alocação, atribuindo-se as vagas na proporção da votação de cada partido coligado.
Quanto ao cálculo para a distribuição das cadeiras, geralmente se utiliza um quociente eleitoral (QE), que é a razão entre o total de votos válidos e o número de vagas a preencher. Então se calcula o quociente partidário (QP), razão entre o total de votos que o partido ou coligação recebeu e o QE. O partido terá direito a tantas cadeiras quantas indicarem o QP. Nessa situação, pode ocorrer que um partido ou coligação tenha recebido expressivo número de votos concentrados num só ou em poucos candidatos, o que provoca o fenômeno de esse candidato ‘puxar’ outros de seu partido ou coligação, elegendo-os, também, ainda que com inexpressiva votação individual destes.
A distorção observada é que vários partidos deixam de eleger candidatos de votação considerável em virtude de seus votos estarem pulverizados entre muitos candidatos. Uma forma de evitar os chamados ‘paraquedistas’, em geral pessoas famosas, como artistas e desportistas, poderia ser a exigência, para determinado cargo eletivo, de experiência em cargo eletivo anterior, de nível subnacional sucessivamente, de segundo e primeiro nível, no âmbito dos municípios e Estados, respectivamente.
Outra particularidade seria a adoção da ‘lista fechada preordenada’ (ou bloqueada), cuja maior aceitação, contudo, é associada ao sistema majoritário-proporcional do tipo alemão.
Desproporcionalidade
A busca da proporcionalidade implica prevenir, evitar ou solucionar as distorções que geram desproporcionalidade.
O fato é que no Brasil o Estado de São Paulo possui setenta deputados, sendo que onze outras Unidades da Federação e não apenas uma delas (uma distorção), como seria de se esperar, possuem o mínimo de oito. E ainda que ocorressem calamidades, migrações ou surtos de fertilidade, é impossível que todos se igualassem no número máximo, mesmo no longo prazo.
Isso não significa, contudo, que diante dessa constatação, o problema não exista. Veja-se outra distorção, de ocorrência mais provável: por mais que crescesse a população de São Paulo, o Estado sempre teria setenta deputados federais. De outro lado, ainda que todos os Estados tendessem a igualar sua população à do mais populoso, pelo menos um deles contaria apenas oito deputados. E aqueles cuja população equivalesse à do menos denso também teriam de se contentar com o mínimo. Desta forma, a representatividade dos que apresentassem número de deputados próximo do máximo e do mínimo, pelo sistema proporcional, seria claramente injusta.
A incongruência da irredutibilidade prevista no art. 4º, § 2º, do ADCT, gerou outras. Uma, com relação ao Estado de Goiás que, tendo perdido parte de sua área e população para o então criado Estado do Tocantins, não teve redução no número de dezessete representantes, superando, até hoje, os dezesseis do Estado de Santa Catarina, embora menos povoado. Outra, quanto ao Estado do Maranhão, que teve a população reduzida, permanecendo com dezoito representantes, enquanto o vizinho Estado do Pará possui dezessete, se bem que mais populoso atualmente. Posteriormente, devido à alteração populacional dos Estados, outras distorções surgiram, como a existente entre o Amazonas com oito representantes e o Espírito Santo com dez, sendo este menos populoso. No mesmo sentido o Piauí, com dez e Alagoas com nove, embora o segundo seja mais populoso. Os mesmos Estados do Piauí e Alagoas são menos populosos que Mato Grosso e Rio Grande do Norte, que têm direito a oito deputados. Noutra linha de raciocínio, tendo sido a população de 2.500.000 habitantes considerado o teto base para oito representantes[18], Amazonas, Rio Grande do Norte, Mato Grosso, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul e Sergipe já ultrapassaram essa ‘barreira’.
A nosso sentir o ideal seria adotar, portanto, sistema eleitoral proporcional personalizado ('distrital misto'), com metade dos representantes eleitos em distritos uninominais, por maioria simples e metade por listas partidárias fechadas, proporcionalmente à população, podendo-se vedar coligações. É certo que a diminuição do tamanho dos distritos implicaria o barateamento das campanhas e que o sistema misto garantiria a representação das minorias, além de um compromisso mais efetivo entre o representante e seu eleitor.
Para tanto é necessário instituir um ‘módulo distrital’, que é o número aproximado de habitantes igual à população dividida pelo número de deputados a serem eleitos pelos distritos. Estes poderiam se candidatar tanto por um distrito quanto pela lista ou por ambos. O ideal é que a eleição ocorresse em turno único, o que tenderia a reduzir os custos de campanha, permitindo democratizar os pleitos. Os distritos poderiam ser subdivididos em subdistritos, para acomodar as eleições dos deputados estaduais. Outra correção possível, existente no sistema alemão, é a adoção de um quociente nacional único, resultante da divisão da população do país pelo total de representantes a eleger, que tende a agregar ainda mais proporcionalidade ao sistema.
Embora os cálculos iniciais para o estabelecimento da proporcionalidade possam ter se baseado em critérios que não sejam meramente aleatórios, empíricos, sem critério razoável, cuida-se que tenham sido feitos com base nas populações da época. Entretanto, desde então ocorrem migrações entre os Estados, alguns podem ter crescimento vegetativo superior ao de outro, superando-o e mesmo ter redução populacional.
Empiricamente verifica-se ser impossível fazer o ajuste da proporcionalidade conforme a população. Dentre as inúmeras formas de cálculo, testa-se a que pareceu mais lógica. Divide-se a população do país por 513, obtendo-se um quociente popula-cional nacional (QPN), que aplicado como divisor à população de cada Estado e do Distrito Federal, resulta no número base de representantes de cada um. Estabilizam-se o número de representantes de São Paulo (70) – embora tenha obtido 111 vagas na simulação –, e das sete Unidades da Federação (UF) que obtiveram QPN menor que 8, igualando-os a 8 mediante cessão das vagas excedentes de São Paulo.
As vagas remanescentes (513 - 70 - 64 = 379) são submetidas como divisor à população somada das demais UF, resultando no quociente populacional intermediário (QPI). Este QPI é aplicado como divisor às populações das demais UF, determinando o novo número de representantes de cada uma. Utilizando-se a população do País, estimada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para 2014, de 202.768.562 habitantes, os cálculos resultam em redução em um representante para Alagoas, Goiás, Maranhão e Pernambuco; dois para Paraíba, Paraná, Piauí e Rio Grande do Sul; e quatro para o Rio de Janeiro. Há aumento em um representante para Santa Catarina, dois para o Amazonas e três para o Pará.
Sobram dez vagas, cujo critério de preenchimento torna-se impraticável, visto que faltam dezesseis vagas para os Estados cuja bancada é ‘irredutível’. Ainda que se aplicasse critério de aproximação, ele é possível apenas em relação a uma vaga de Alagoas, Goiás, Maranhão e Paraná. Tal aproximação não leva em conta, porém, que pelo mesmo critério, Ceará, Minas Gerais, Pará e Rio Grande do Norte teriam direito a mais uma vaga, também. Destes, apenas o último tem média inferior à de Goiás, a maior média do primeiro grupo.
Infere-se que a aplicação das duas regras incompatíveis entre si, vedação ao aumento geral e à redução por UF, leva à impossibilidade de se proceder a qualquer ajuste, não sendo factível atender o comando constitucional, o que demonstra que o dispositivo pertinente precisa ser alterado. Percebe-se, portanto, que a manutenção das barreiras mínima e máxima de representantes por unidade federada não admite qualquer solução que contemple a proporcionalidade desejada em relação aos Estados mais e menos populosos.
Conclusão
Tendo em vista as limitações do mínimo e máximo, considera-se que o constituinte não atuou com equidade.
O caráter hermético das regras que inadmitem aumentos ou reduções das bancadas total do país e parciais por UF, levam à busca de método, fórmula ou critério que atenda ao requisito da proporcionalidade ou, se isso não for possível, da equidade. Assim, autores como La Palombara (1982), Lijphart (2003) e Auriol e Gary-Bobo (2007) sugeriram aplicação de regras progressivas, semelhantes às que existiam durante o Império do Brasil, propondo, por exemplo, a raiz quadrada ou raiz cúbica da população[19].
Qualquer reforma política e em especial a eleitoral exige equacionar primeiramente as distorções da desproporcionalidade. É preciso, portanto, optar por uma das seguintes soluções: 1) extinguir as limitações para o mínimo e máximo e vedações a aumento ou reduções de bancadas total e parciais das UF; 2) adotar um critério de ‘proporcionalidade progressiva’. A segunda opção pressupõe a inexistência dos limites mencionados, no entanto evita a tendência ao aumento indiscriminado do número de representantes, estabelecendo uma barreira aritmética que permite aumentos meramente incrementais. Um modelo de proporcionalidade progressiva apresenta inúmeras vantagens em relação à proporcionalidade estrita[20].
A possibilidade de coligação partidária num sistema de lista aberta de voto transferível uninominal, como o brasileiro, é o que mais gera a desproporcionalidade em relação aos partidos, já que apenas a votação individual é que conta no resultado dos partidos coligados, embora o quociente eleitoral seja calculado em conjunto. Visando a reduzir a desproporcionalidade atual, segundo Nicolau (2003, pp. 214-18, passim), poderiam ser adotadas, dentre outras medidas: 1) o não estabelecimento de cláusula de exclusão expressa; 2) a proibição das coligações nas eleições proporcionais ou, mantendo-as, a mudança da alocação das vagas na proporção dos votos obtidos por cada partido coligado; e 3) a alteração da alocação das vagas decorrentes das sobras das cadeiras não distribuídas pelo quociente eleitoral, do método das maiores médias para o das maiores sobras.
Outro fator redutor da desproporcionalidade é o aumento da magnitude dos distritos, o que pode ser obtido ao se estabelecer uma unidade territorial mínima para a conformação de cada distrito. Destarte, podem-se adotar, sucessivamente, as mesorregiões e microrregiões homogêneas como unidades preferenciais e como unidade territorial mínima a do município[21]. Ainda assim, o município de São Paulo, por exemplo, constituiria um distrito plurinominal em razão de sua expressiva população.
Cálculos empíricos demonstram que a desproporcionalidade decresce com o aumento dos seguintes fatores, como variáveis independentes: magnitude; eleitorado; distância entre si dos percentuais de votação obtidos pelos vários partidos; e número de partidos. Além disso, a perfeita proporcionalidade só é atingida quando o percentual de votação coincide com múltiplos ou divisores do número que representa a magnitude do distrito ou circunscrição eleitoral, o que é praticamente impossível ocorrer.
O fator que mais interfere no cálculo da desproporcionalidade da representação é a alocação das vagas não distribuídas pelo quociente eleitoral. Como as vagas a serem disputadas pelo cálculo das sobras pode atingir até o valor de M - 1 (magnitude menos um)[22], revela-se extremamente importante o cuidado que se deve ter na elaboração legislativa pertinente.
O aperfeiçoamento do sistema eleitoral, aliado ao aprimoramento do sistema partidário, é o cerne da reforma política. Essa reforma não se constrói apenas em um momento de apelos oriundos de desdobramentos de fatos políticos. Deve ser um processo contínuo, de maturação de ideias, de adoção de modelos consagrados e, também – por que não –, da experimentação de métodos racionalmente desenvolvidos que deem autossustentabilidade ao processo. Não obstante, reformas pontuais e incrementais parecem ter mais probabilidade de sucesso.
De todo o exposto, só o atingimento de um ótimo de Pareto[23], segundo alguma fórmula genial, atenderia a todas as necessidades de se aperfeiçoar o sistema e atender os interesses dos partidos e dos cidadãos.

Referências

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______. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Divisão regional do Brasil em regiões geográficas imediatas e regiões geográficas intermediárias : 2017 / IBGE, Coordenação de Geografia. -Rio de Janeiro : IBGE, 2017. Portal do IBGE. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv100600.pdf>. Acesso em: 21 set. 2018.

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LA PALOMBARA, Joseph G. A política no interior das nações. Trad. do 1º ao 5º capítulo de Marilu Seixas Corrêa e do 6º em diante de Oswaldo Biato. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, c1974. (Coleção Pensamento Político, 60).

Lijphart, Arend. Modelos de democracia. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.

NICOLAU, Jairo Marconi. A reforma da representação proporcional no Brasil. In: BENEVIDES, Maria Victoria, VANNUCHI, Paulo e KERCHE, Fábio (org). Reforma política e cidadania. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003, p. 201-224.

________. Sistemas eleitorais. 5. ed. rev. atual. São Paulo: Editora FGV, 2004.

RABAT, Márcio Nuno; CASSIANO, Webster Spiguel. Distribuição das vagas das unidades federativas na Câmara dos Deputados: interpretando a legislação em vigor. In: Cadernos Aslegis/Associação dos Assessores Legislativos e de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados - v. 1, n. 2, (maio/ago. 1997). Brasília: Aslegis, 1997, p. 48-54.

ROCHA, Claudionor. Representação proporcional na Câmara dos Deputados. Monografia (especialização) – Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), da Câmara dos Deputados, Curso de Especialização em Instituições e Processos Políticos do Legislativo, 2008. Disponível em <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/ 3568/representacao_proporcional_rocha.pdf?sequence=5>. Acesso em 20 mar. 2015.




[1] Consultor legislativo da Câmara dos Deputados, graduado em Direito e Segurança Pública, especialista em Instituições e Processos Políticos do Legislativo e Mestre em Ciência Política, com ênfase em Poder Legislativo. Texto elaborado em maio de 2015 e atualizado em novembro de 2018.
[2] A maneira de se eleger os representantes, a quantidade deles, a definição de quem pode ser eleito, de quem pode participar da escolha, sobre qual a duração do mandato, a extensão territorial em que se dará esse mandato, a possibilidade de se renová-lo e outras peculiaridades, portanto, é que compõem as regras que formam o sistema eleitoral.
[3] Segundo a teoria consociativa da democracia, que visa ao consenso.
[4] O sistema distrital puro tende a favorecer o bipartidarismo, excluindo, portanto, as minorias, o que facilita a governabilidade, com sacrifício, porém, da representatividade.
[5] Termo em inglês formado pelo nome do político norteamericano Elbridge Gerry e pelo vocábulo salamander (salamandra). Em 1812, a legislatura de Massachusetts redesenhou os limites dos círculos eleitorais para favorecer os candidatos do partido republicano jeffersoniano, especialmente Elbridge Gerry, governador do Massachusetts e vice-presidente dos EUA. Os jornalistas que observavam o novo mapa eleitoral notaram que um dos novos círculos tinha a forma de uma salamandra, ao qual puseram o nome Gerrymander. O termo teve êxito e hoje continua a usar-se gerrymandering no jargão da ciência política para designar a ação de direcionar a redistritação para englobar porções do território favoráveis a determinado candidato e excluir as desfavoráveis, tornando a forma do distrito bastante peculiar.
[6] Atualmente o tempo gratuito de propaganda no rádio e na televisão é patrocinado pela lei eleitoral, consistindo em autêntico financiamento público.
[7] O financiamento privado das campanhas eleitorais foi vedado pela Lei nº 13.488, de 6 de outubro de 2017, salvo para pessoas físicas, segundo certos limites. O resultado das eleições de 2018 indicam o surgimento de novo paradigma, em que os gastos de campanha podem ser minimizados pela adoção de novas estratégias de convencimento do eleitor que não a simples propaganda cuidadosamente elaborada por marqueteiros. [nota incluída posteriormente]
[8] Pessoas jurídicas costumam doar em proporções ligeiramente iguais a candidatos diversos e mesmo adversários entre si, às vezes a todos os candidatos, numa espécie de aceitação da incerteza do resultado, mas seguramente como forma de antecipação de um favor que será cobrado do que for eleito, durante o mandato. Nesse caso, é difícil limitar a doação a apenas um partido ou coligação e mesmo a uma tendência ideológica.
[9]Art. 4º (...) § 2º É assegurada a irredutibilidade da atual representação dos Estados e do Distrito Federal na Câmara dos Deputados”. Tendo em vista o vocábulo ‘atual’ constante do dispositivo, há entendimento que a irredutibilidade se aplicaria tão-somente à então bancada existente e não às posteriores. Assim, é compreensível o entendimento do STF, o qual não conheceu do Mandado de Injunção nº 233-9, do Distrito Federal, pela irredutibilidade da representação dos Estados.
[10] O art. 106 do Código Eleitoral determina que quociente eleitoral é a razão entre o número de votos válidos e os lugares a preencher nas eleições proporcionais (deputados e vereadores).
[11] O critério para o estabelecimento dessas quantidades, aliás, não é claro.
[12] Rabat e Cassiano, 1997.
[13] No Brasil, embora eleitos pelo sistema majoritário, os senadores o são por um e dois terços, alternadamente, a cada pleito. Assim, por haver três senadores por unidade federada, na eleição para dois terços a magnitude é dois. Em alguns países, geralmente é eleito apenas um senador a cada pleito, o que corresponde à magnitude um.
[14] Cintra (1998, p. 112) defende que o atingimento da proporcionalidade é “impossível com apenas um representante, e baixa com menos de cinco representantes”. Logo, a magnitude mínima necessária para se atingir a proporcionalidade seria M=5.
[15] Os cientistas políticos consideram ideal chamá-la ‘cláusula de desempenho’, para evitar o sentido restritivo e até discriminatório, tendente a considerá-la prejudicial (embora adotada em muitos países de forte tradição democrática). Eventualmente foi esse o ânimo do Supremo Tribunal Federal, que no dia 7/12/2006 julgou a cláusula de exclusão brasileira inconstitucional, conforme seguinte notícia, disponível no site <www.stf.gov.br>, acessado em 10 dez. 2006: “O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos) que instituem a chamada ‘cláusula de barreira’. A decisão unânime foi tomada no julgamento conjunto de duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 1351 e 1354), ajuizadas, respectivamente, pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e pelo Partido Socialista Cristão (PSC)”.
[16] A Emenda Constitucional nº 97, de 4 de outubro de 2017 instituiu a cláusula de barreira, a ser implementada progressivamente, já a partir das eleições de 2018. [nota incluída posteriormente]
[17] Vide PL (projeto de lei) nº 2.679/2003. Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/proposicoes>. Acesso em: 10 dez. 2006.
[18] Vide a notícia no trabalho de Rocha, 2008, p. 78.
[19] Característica das bancadas parlamentares é a de serem progressivamente reduzidas com o aumento da população, como vislumbrado por Lijphart (2003, pp. 179/180).
[20] Vide o trabalho de Rocha, 2006, p. 98.
[21] Em 2017 o IBGE adotou nova nomenclatura e reconfiguração espacial para tais porções territoriais, quais sejam: regiões geográficas imediatas e regiões geográficas intermediárias (BRASIL, 2017). [nota incluída posteriormente]
[22] Teoricamente possível demonstrar, desde que o número de partidos na disputa dos votos seja pelo menos igual à magnitude.
[23] Situação em que não é possível obter nenhuma melhoria de Pareto (melhorar a situação de alguém sem piorar a de ninguém). O conceito é devido ao economista italiano Vilfredo Pareto, também conhecido pela chamada Lei de Pareto (ou princípio 80-20), segundo a qual, para muitos fenômenos, oitenta por cento das consequências advém de vinte por cento das causas.

Fonte da figura: dicio.com.br

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