quinta-feira, 6 de abril de 2017




COMO FAZER UM RECONHECIMENTO 
Claudionor Rocha[1]

                    Ás vezes a autoridade policial descobre ou suspeita da autoria de determinada infração penal, mas a identidade do autor estava ignorada pela vítima ou testemunhas. Nessa circunstância, cabe um elemento de prova que é o reconhecimento da pessoa, a ser procedida pela vítima, pela testemunha ou por ambas. O mesmo se dá com instrumentos, objetos ou produtos do crime, posteriormente recuperados ou apreendidos pela polícia.
                    Recentemente um telejornal noticiou a libertação de um cidadão que ficara preso por dois meses, por ter sido reconhecido como autor do furto de um telefone celular. Consta que um policial civil, fora de sua circunscrição, ‘descobrira’ o autor dentre os vendedores ambulantes que atuavam nas imediações da delegacia, fotografando-o e enviando a imagem para sua esposa, vítima do furto. Levada a proceder ao reconhecimento formal, a vítima apontou o suspeito como autor, o que levou à sua prisão.
                    Embora o ato formal de reconhecimento de pessoa possa ter sido conduzido adequadamente, a circunstância de divulgação prévia da fotografia do suspeito viciou o ato, culminando na perpetração de um erro judiciário irreparável, induzido por uma atitude irresponsável do policial que, agindo parcialmente, errou.
                    Segundo Dip (in Dip; Moraes Júnior, 2002, p. 205), a vítima é também um órgão de prova, mas pode errar no juízo de recognição pessoal do réu, o mesmo se aplicando no reconhecimento de coisas, por
          a) sugestionabilidade, inclusivamente atenção expectante; b) deficiência perceptiva; c) fragilidade na retenção das imagens; d) complemento fabulativo da percepção fragamentária evocada; e) vaidade; f) orgulho obstativo da retificação de reconhecimento precipitado; g) mentira inconsciente no histerismo; h) propósito de falsear.[2]
                    Destarte, o ato de reconhecimento deve ser cercado de cuidados visando a prevenir o erro de um ato de reconhecimento mal conduzido, que pode gerar o chamado ‘falso positivo’.
                    A autoridade policial deve presidir o reconhecimento de pessoas (fisicamente, por fotografia ou imagem), ou de objetos, cabendo-lhe explicar previamente ao reconhecedor e às testemunhas a finalidade e o objetivo do ato, de que maneira será procedido e qual a atribuição de cada um.
                    Antes do ato o reconhecedor não deve ter contato com a pessoa ou objeto a ser reconhecido, ou imagem deles, devendo fazer sua descrição previamente, na presença das testemunhas. Havendo mais de um reconhecedor, não podem ter contato entre si, devendo ser alternadas as posições dos reconhecendos, das fotografias/imagem ou dos objetos, a cada ato. O ideal é que haja pelo menos quatro ‘suspeitos’ para evitar que da janela de reconhecimento o reconhecedor aponte o que estiver logo à sua frente, evitando-se, igualmente, que o suspeito real seja colocado nessa posição. A comando de um servidor, os reconhecendos devem ficar de frente e também de lado e de costas se o reconhecedor tenha visto o suspeito nessas posições durante o evento, a fim de permitir segurança no reconhecimento.
                    No reconhecimento físico de pessoas, evitar-se-á que o reconhecedor fale, pois pode dar-se a conhecer ao reconhecendo, devendo ficar claro, porém, para os intervenientes, qual foi a pessoa reconhecida.
                    Providência essencial no ato de reconhecimento, portanto, é não deixar que o reconhecendo ou reconhecido veja o reconhecedor. Para tanto utiliza-se ambientes contíguos, separados por janela com vidro reflexivo, onde ficarão, também separados, o reconhecedor e o reconhecendo.
                    Cabendo à polícia judiciária a busca da verdade real, será documentado mesmo o reconhecimento formal com resultado negativo, ou com indicação imprecisa, devendo ser consignado no auto o grau de precisão ou eventuais reações do reconhecedor.
                    Algumas instituições policiais recomendam a assinatura do reconhecido, se positivo o reconhecimento, mandando consignar a recusa, no encerramento. No entanto, não há necessidade de assinatura do reconhecido, pois há testemunhas do ato, além do que, tal providência pode comprometer a segurança do reconhecedor, pois na hipótese de várias vítimas, o reconhecedor nem sempre saberá quem o reconheceu. Não se dando conhecimento de imediato ao reconhecido, protege-se, até certo ponto, a indenidade da vítima ou da testemunha, até que posteriormente o defensor daquele o oriente acerca da temeridade de uma retaliação, por exemplo.
                    O auto de reconhecimento de pessoa, por fotografia ou imagem no computador, é semelhante, bastando identificar as fotografias/imagens, por número, dispostas quatro a quatro, por exemplo. Deve-se apresentá-las ao mesmo tempo, e não sucessivamente, para não influenciar o ânimo do reconhecedor. É conveniente que as fotografias utilizadas e sua disposição ou numeração sejam fotografadas, fazendo parte do auto. O mesmo procedimento se aplica a objetos em geral, tendo-se sempre o cuidado de as pessoas ou objetos a serem reconhecidos serem os mais parecidos possível entre si.
                    Outro cuidado a se ter é que, na ausência de ‘pessoas do povo’ para servirem como ‘suspeitos’ comumente se convida serviçais das unidades (pessoal terceirizado, geralmente) e mesmo policiais para comporem o rol de suspeitos. Isso ocorre especialmente à busca de alguém que se pareça com o suspeito real, mas não deve ser adotada sistematicamente, sob pena de incorrer em tais pessoas serem apontadas como autores de um crime apenas por nervosismo do reconhecedor.
                    A forma de proceder no reconhecimento de pessoas ou coisas está prescrita nos arts. 226 e 228 do CPP. Não sendo possível o reconhecimento pessoal, preferível ao fotográfico, deve-se adotar este, observando-se as mesmas cautelas.
                    Desde que a vítima se encontre em perigo de vida e exista pessoa suspeita da autoria do delito a autoridade policial deve determinar a realização imediata do auto de reconhecimento, nas hipóteses cabíveis, para perpetuação da prova (ad perpetuam rei memoriam).
Elementos constitutivos do auto de reconhecimento
                    Devem constar do ‘auto de reconhecimento’ (de pessoa, objeto, fotografia) os seguintes dados:
          a) identificação da instituição, órgão e unidade;
                    b) expressão auto de reconhecimento de pessoa ou equivalente, preferencialmente centralizada, em destaque (negrito, sublinha ou fonte maior);
c) local de lavratura, data e horário, este, facultativo;
d) identificação da autoridade policial e do escrivão;
                    e) consignação do documento de referência (inquérito policial, ocorrência etc.);
                    f) descrição da pessoa ou objeto suspeito e breve histórico acerca do objetivo do reconhecimento; qualificação sucinta do suspeito e das demais pessoas ou descrição das peças dispostas para o reconhecimento; resultado;[3]
                    g) apenas um reconhecedor e um suspeito por auto (art. 288 do Código de Processo Penal).
Exemplo de auto de reconhecimento de pessoa



Brasão 
de 
armas

[GRANDE UNIDADE]

[UNIDADE INTERMEDIÁRIA]

Unidade Considerada

AUTO DE RECONHECIMENTO DE PESSOA
[ou AUTO DE RECONHECIMENTO DE PESSOA POR FOTOGRAFIA/IMAGEM
ou AUTO DE RECONHECIMENTO DE OBJETO]
Ref. IP nº ...............

                    Em....................., nesta cidade de Brasília/DF, na ... [unidade], presente o Dr. ..., autoridade policial respectiva, comigo, F..., escrivão,  compareceu a testemunha [ou vítima] F..., já ouvida nestes autos às fls. ..., onde descreveu o suspeito de haver praticado o crime objeto de apuração neste inquérito. Em seguida, na presença das testemunhas A e B [qualificações e endereços], foi instada pela autoridade policial para que descrevesse as características físicas do suspeito, informando tratar-se de uma pessoa do sexo ..., cor ..., idade aproximada de ... anos, altura aproximada de ..., compleição física ... [gorda, magra, forte etc.], cabelos ... [cor, tamanho e corte], apresentando ... [defeito físico; tatuagem; sinal particular, como verruga, mancha na pele, falta de dentes etc.], que na ocasião usava ... [óculos, barba, bigode, cavanhaque, chapéu, boné, touca, lenço etc.]. Em seguida foi levada até a sala onde já se encontrava “o suspeito Fulano ... [qualificação e endereço ou “já qualificado às fls. .... deste inquérito”], num grupo de pessoas” [ou, não havendo suspeito, “um grupo de pessoas”] constituído por A, B, C, D ... [qualificações e endereços], todos com características físicas semelhantes às do suspeito [ou da pessoa descrita]. Ato contínuo, a autoridade policial convidou F ... a apontar, dentre as pessoas do referido grupo, aquela que, no dia ..., às ..., participou do crime em apuração nestes autos, conforme descrevera no seu depoimento, havendo a mesma apontado com segurança e presteza o suspeito Fulano ..., que ora reconhece [ou: “não havendo reconhecido entre os presentes o suspeito que descrevera no seu depoimento acima referido”].  Nada mais.
Autoridade policial: __________________________________________
Reconhecedor: _____________________________________________
Testemunha: _______________________________________________
Testemunha: _______________________________________________ 
Escrivão: __________________________________________________




[1] Consultor legislativo da Área XVII – Segurança Pública e Defesa Nacional, da Câmara dos Deputados, foi delegado de polícia da Polícia Civil do Distrito Federal.
[2] DIP, Ricardo; MORAES JÚNIOR, Volney Corrêa Leite de. Crime e castigo: reflexões politicamente incorretas. Campinas : Millennium, 2002.
[3] Discute-se acerca do resultado, se se deve consignar o não-reconhecimento. Para quem entende que o nome do documento refere-se ao resultado, a consignação do não-reconhecimento é inadmissível (‘reconhecimento negativo’). Quem admite essa consignação, interpreta que o nome se refere ao ato do qual se lavrou o auto, ou seja, o ato é de reconhecimento, independentemente do resultado, pois ninguém é convocado para um ato de não-reconhecimento. Alguns autores dizem que a formalização do chamado ‘reconhecimento negativo’ beneficia o autor. A orientação, nesse caso, entretanto, é no sentido de formalizar, pois o objetivo da polícia não é prejudicar ou beneficiar ninguém, mas descobrir a verdade real. Na lavratura do auto pode-se acrescentar outras impressões, quando o resultado for positivo, como a reação do reconhecedor ao avistar o reconhecendo (com presteza, com segurança, transtornado, aos prantos).