quinta-feira, 26 de novembro de 2020


CICLO COMPLETO DE POLÍCIA 

CLAUDIONOR ROCHA

Consultor Legislativo da Área XVII – Segurança Pública e Defesa Nacional, da Câmara dos Deputados


 Fonte da imagem: metropoles.com

 

1  INTRODUÇÃO

                         Há muito a questão da insegurança vem atormentando o brasileiro. O aumento da criminalidade, da violência e da desordem não é segredo para ninguém. Essas três facetas da desestruturação da paz social requerem a ação do sistema de justiça criminal, integrado pelos subsistemas de segurança pública, judicial e prisional. O primeiro e último estão afetos aos órgãos policiais, vinculados ao Poder Executivo; o segundo aos órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público, autônomos, além da Defensoria Pública, também vinculada ao Poder Executivo, mas com forte matriz de influência do Poder Judiciário e do Ministério Público. Completa o quadro a advocacia privada, atuante em todas as fases, com ênfase na segunda.

                       Os órgãos policiais consistem naqueles arrolados no caput do art. 144 da Constituição, sendo três de nível federal e 54 de nível regional, ou seja, 27 polícias militares (PM) e 27 polícias civis (PC) nos Estados e no Distrito Federal. No nível local (municipal) é facultada a criação de guardas municipais que, se possuem o poder de polícia administrativa, não são considerados órgãos policiais propriamente ditos.

Quadro 1 – Esquema das polícias brasileiras.

Polícias brasileiras

Natureza

Civil

Militar

Esfera

Federal

Polícia federal

-

Polícia rodoviária federal

-

Polícia ferroviária federal

-

Estadual

Polícia civil

Polícia militar




Fonte: elaboração do autor.

                        Releva indagar se tal sistema e seus subsistemas funcionam a contento, em especial o de segurança pública. Suspeita-se que não. Tanto é assim, que desde a redemocratização, quando foram mantidas as estruturas policiais então vigentes, se propugna pela sua mudança, como paliativo para enfrentar a insegurança.

Ora apontam-se fatores sociais previsíveis para o aumento da criminalidade, como o crescimento vegetativo, o êxodo rural, o adensamento das grandes cidades; ora fatores econômicos, como a desigualdade social, o desemprego; ora a baixa qualidade de políticas públicas tendentes a melhorar o padrão de vida, como transporte, saúde, educação, habitação; ora a ineficácia da justiça, gerando impunidade, distorções, punitivas seletivas, altamente criminogênicas; ora a corrupção que grassa no ambiente político; ora variáveis de natureza cultural, tecnológica, psíquica e um enorme et cetera.

E o que fazem os órgãos responsáveis por administrar esse caos é algo ainda desconhecido da maioria da população, diante da falta de transparência que impera no sistema de justiça criminal, a preservação da lógica da defesa de interesses corporativos e a resistência a mudanças estruturais. Opta-se, portanto, por propostas cosméticas que o calendário da arena eleitoral estimula e a mídia sensacionalista ingênua ou naturalmente repercute, dada sua afinidade com o espalhafato.

                 Dentre as várias ideias surgidas ao longo do tempo, a mais persistente consiste na alteração do modelo de polícia. Tal alteração pressupõe analisar qual o modelo de policiamento adequado para a realidade brasileira.

            - Seria adotar polícias estaduais únicas, ou manter como está, com o seccionamento entre uma fase da atividade policial, consistente no policiamento preventivo, teimosamente chamado de ‘ostensivo’, a cargo da polícia militar; e uma fase de polícia repressiva – ou investigativa – a polícia civil? Nesse caso, é bom lembrar que a cúpula da PM é contra a unificação.[1]

                       - Seria dotar as polícias do ciclo completo, eliminando o seccionamento por fases, mas mantendo a dualidade policial? Essa é a bandeira da moda defendida pelo alto escalão militar.[2]

                       - Seria a desmilitarização das polícias militares, apregoada por organismos internacionais? Os altos escalões da PM são também contra a desmilitarização.

                       - Seria favorecer o recrutamento endógeno nas polícias de caráter civil? A Constituição proíbe, mas para as forças militares é permitido.

                       - Seria estabelecer mandatos para os chefes de polícia? Essa medida atenua a ingerência política e a corrupção.[3]

                       - Seria criar a polícia penal? Ela existe, não com esse nome, na área federal, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

                       - Seria conferir poder repressivo à Polícia Rodoviária Federal (PRF)?

                       - Seria municipalizar de vez a polícia? A PM é contra!

                   - Seria, enfim, constitucionalizar a Força Nacional de Segurança Pública, ‘órgão’ esdrúxulo ‘criado’ pela União ao arrepio dos ditames constitucionais utilizando efetivos estaduais?

             Enfim, várias são as hipóteses possíveis. Algumas delas passam, necessariamente, pela prévia alteração constitucional da temática. Outras poderiam ser implementadas por lei ordinária. Todas esbarram nos interesses contraditórios das corporações interessadas. Mas a situação é muito confortável para sindicalistas e parlamentares que brandem bandeiras pela solução da insegurança enquanto ela é incrementada diariamente.

                       Enquanto a PC reclama que a PM não previne, dada a quantidade de flagrantes que produz, a PM apregoa que a PC não dá conta do trabalho que ela, a PM, leva às delegacias; enquanto a academia obtempera que a resolutividade dos casos é pífia, a PC justifica com o escasso efetivo; enquanto se diz que a PF não faz prevenção e atua seletivamente, ela segue com suas ‘operações’, atraindo a simpatia da população; enquanto agentes pugnam pela carreira única – melhor seria dizer cargo único – para ascenderem ao comando da corporação, os delegados querem ser juízes e são agora tratados por Excelência; e para confundir ainda mais, em vez de se discutir os assuntos da moda há poucos anos, desmilitarização da PM ou sua unificação com a PC, se sugere agora a adoção do ciclo completo para todas, o que é alardeado como a solução mágica que coarctará as disputas e restituirá a tranquilidade à sociedade.

                       Mas é preciso se despir dos corporativismos. Será que a pletora de casos levados à polícia civil pela polícia militar – falha na prevenção? – não estaria criando uma demanda reprimida por investigação, em que a hipótese de ‘enxugar gelo’ não passa da necessidade de se estabelecer prioridades, que logo serão superadas pelas próximas? Será que algumas escalas generosas existentes nas polícias não seriam um dos fatores para a escassez de pessoal? Mas quem há de suprimi-las? Será que os gestores das polícias levam em conta critérios técnicos para lotação de policiais conforme os índices de criminalidade?

                       E quando se passará do policiamento reativo para o proativo? Quando a polícia comunitária deixará de ser vitrine para se tornar filosofia de policiamento? Quando a PC deixará de fazer prevenção e a PM deixará de fazer investigação? Quando a lotação e remoção de comandantes e delegados-chefes deixará de ter influência política? Quando a remuneração dos policiais será equânime? Quando o fluxo de carreira será previsível e atraente? Até quando as estatísticas policiais serão segredo profissional? Há muitos ‘serás’ e outros tantos ‘quandos’ aguardando resposta...