quinta-feira, 26 de novembro de 2020


CICLO COMPLETO DE POLÍCIA 

CLAUDIONOR ROCHA

Consultor Legislativo da Área XVII – Segurança Pública e Defesa Nacional, da Câmara dos Deputados


 Fonte da imagem: metropoles.com

 

1  INTRODUÇÃO

                         Há muito a questão da insegurança vem atormentando o brasileiro. O aumento da criminalidade, da violência e da desordem não é segredo para ninguém. Essas três facetas da desestruturação da paz social requerem a ação do sistema de justiça criminal, integrado pelos subsistemas de segurança pública, judicial e prisional. O primeiro e último estão afetos aos órgãos policiais, vinculados ao Poder Executivo; o segundo aos órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público, autônomos, além da Defensoria Pública, também vinculada ao Poder Executivo, mas com forte matriz de influência do Poder Judiciário e do Ministério Público. Completa o quadro a advocacia privada, atuante em todas as fases, com ênfase na segunda.

                       Os órgãos policiais consistem naqueles arrolados no caput do art. 144 da Constituição, sendo três de nível federal e 54 de nível regional, ou seja, 27 polícias militares (PM) e 27 polícias civis (PC) nos Estados e no Distrito Federal. No nível local (municipal) é facultada a criação de guardas municipais que, se possuem o poder de polícia administrativa, não são considerados órgãos policiais propriamente ditos.

Quadro 1 – Esquema das polícias brasileiras.

Polícias brasileiras

Natureza

Civil

Militar

Esfera

Federal

Polícia federal

-

Polícia rodoviária federal

-

Polícia ferroviária federal

-

Estadual

Polícia civil

Polícia militar




Fonte: elaboração do autor.

                        Releva indagar se tal sistema e seus subsistemas funcionam a contento, em especial o de segurança pública. Suspeita-se que não. Tanto é assim, que desde a redemocratização, quando foram mantidas as estruturas policiais então vigentes, se propugna pela sua mudança, como paliativo para enfrentar a insegurança.

Ora apontam-se fatores sociais previsíveis para o aumento da criminalidade, como o crescimento vegetativo, o êxodo rural, o adensamento das grandes cidades; ora fatores econômicos, como a desigualdade social, o desemprego; ora a baixa qualidade de políticas públicas tendentes a melhorar o padrão de vida, como transporte, saúde, educação, habitação; ora a ineficácia da justiça, gerando impunidade, distorções, punitivas seletivas, altamente criminogênicas; ora a corrupção que grassa no ambiente político; ora variáveis de natureza cultural, tecnológica, psíquica e um enorme et cetera.

E o que fazem os órgãos responsáveis por administrar esse caos é algo ainda desconhecido da maioria da população, diante da falta de transparência que impera no sistema de justiça criminal, a preservação da lógica da defesa de interesses corporativos e a resistência a mudanças estruturais. Opta-se, portanto, por propostas cosméticas que o calendário da arena eleitoral estimula e a mídia sensacionalista ingênua ou naturalmente repercute, dada sua afinidade com o espalhafato.

                 Dentre as várias ideias surgidas ao longo do tempo, a mais persistente consiste na alteração do modelo de polícia. Tal alteração pressupõe analisar qual o modelo de policiamento adequado para a realidade brasileira.

            - Seria adotar polícias estaduais únicas, ou manter como está, com o seccionamento entre uma fase da atividade policial, consistente no policiamento preventivo, teimosamente chamado de ‘ostensivo’, a cargo da polícia militar; e uma fase de polícia repressiva – ou investigativa – a polícia civil? Nesse caso, é bom lembrar que a cúpula da PM é contra a unificação.[1]

                       - Seria dotar as polícias do ciclo completo, eliminando o seccionamento por fases, mas mantendo a dualidade policial? Essa é a bandeira da moda defendida pelo alto escalão militar.[2]

                       - Seria a desmilitarização das polícias militares, apregoada por organismos internacionais? Os altos escalões da PM são também contra a desmilitarização.

                       - Seria favorecer o recrutamento endógeno nas polícias de caráter civil? A Constituição proíbe, mas para as forças militares é permitido.

                       - Seria estabelecer mandatos para os chefes de polícia? Essa medida atenua a ingerência política e a corrupção.[3]

                       - Seria criar a polícia penal? Ela existe, não com esse nome, na área federal, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

                       - Seria conferir poder repressivo à Polícia Rodoviária Federal (PRF)?

                       - Seria municipalizar de vez a polícia? A PM é contra!

                   - Seria, enfim, constitucionalizar a Força Nacional de Segurança Pública, ‘órgão’ esdrúxulo ‘criado’ pela União ao arrepio dos ditames constitucionais utilizando efetivos estaduais?

             Enfim, várias são as hipóteses possíveis. Algumas delas passam, necessariamente, pela prévia alteração constitucional da temática. Outras poderiam ser implementadas por lei ordinária. Todas esbarram nos interesses contraditórios das corporações interessadas. Mas a situação é muito confortável para sindicalistas e parlamentares que brandem bandeiras pela solução da insegurança enquanto ela é incrementada diariamente.

                       Enquanto a PC reclama que a PM não previne, dada a quantidade de flagrantes que produz, a PM apregoa que a PC não dá conta do trabalho que ela, a PM, leva às delegacias; enquanto a academia obtempera que a resolutividade dos casos é pífia, a PC justifica com o escasso efetivo; enquanto se diz que a PF não faz prevenção e atua seletivamente, ela segue com suas ‘operações’, atraindo a simpatia da população; enquanto agentes pugnam pela carreira única – melhor seria dizer cargo único – para ascenderem ao comando da corporação, os delegados querem ser juízes e são agora tratados por Excelência; e para confundir ainda mais, em vez de se discutir os assuntos da moda há poucos anos, desmilitarização da PM ou sua unificação com a PC, se sugere agora a adoção do ciclo completo para todas, o que é alardeado como a solução mágica que coarctará as disputas e restituirá a tranquilidade à sociedade.

                       Mas é preciso se despir dos corporativismos. Será que a pletora de casos levados à polícia civil pela polícia militar – falha na prevenção? – não estaria criando uma demanda reprimida por investigação, em que a hipótese de ‘enxugar gelo’ não passa da necessidade de se estabelecer prioridades, que logo serão superadas pelas próximas? Será que algumas escalas generosas existentes nas polícias não seriam um dos fatores para a escassez de pessoal? Mas quem há de suprimi-las? Será que os gestores das polícias levam em conta critérios técnicos para lotação de policiais conforme os índices de criminalidade?

                       E quando se passará do policiamento reativo para o proativo? Quando a polícia comunitária deixará de ser vitrine para se tornar filosofia de policiamento? Quando a PC deixará de fazer prevenção e a PM deixará de fazer investigação? Quando a lotação e remoção de comandantes e delegados-chefes deixará de ter influência política? Quando a remuneração dos policiais será equânime? Quando o fluxo de carreira será previsível e atraente? Até quando as estatísticas policiais serão segredo profissional? Há muitos ‘serás’ e outros tantos ‘quandos’ aguardando resposta...


2  CICLO COMPLETO

                        O ciclo completo de polícia, sonho de consumo dos policiais militares, já que as polícias civis de certa forma o fazem, seria automaticamente adotado. Certo que o ciclo completo não significa que o mesmo policial que efetuava a prevenção vá executar a prisão ou investigar o evento, formalizar os atos procedimentais e dar por finda a persecução criminal no âmbito policial. Pode-se admitir circunstâncias especiais em que isso pudesse ocorrer, como acontece com os gendarmes franceses, quando a guarnição da polícia em determinada localidade é muito pequena.[4] A completude do ciclo refere-se ao organismo policial, sendo que as várias fases podem ser executadas por policiais diferentes, mas dentro de uma mesma lógica de continuidade, pois que realizada no âmbito do mesmo órgão, e não de forma estanque como atualmente são conduzidas tais fases.

                        Rondon Filho (2003) traz algumas reflexões acerca do que seja o ciclo completo de polícia, nos seguintes termos:

Na década de 20 do século passado, também no Estado de São Paulo, foi criada a Guarda Civil integrando os quadros da polícia civil (disciplina militar) propiciando neste caso o desempenho do ciclo completo de polícia.

Enfim, existem inúmeros pontos a se discutir quando se fala dos organismos policiais, entretanto o foco principal desta pesquisa é o ciclo policial, citado no Plano de Segurança Pública para o Brasil, elaborado por equipe de gestores do atual Governo Federal, como adiante transcrevemos:

As mudanças mais profundas na segurança pública, que demarcarão o fim do modelo de polícia criado nos períodos autoritários, exigem o estabelecimento de um novo marco legal para o setor de segurança. [...] As polícias estaduais de ciclo completo, produtos do novo marco constitucional, têm como base o Sistema Único de Segurança Pública, iniciado pelos governos estaduais e federal, e suas interfaces com os municípios (Plano de Segurança Pública para o Brasil, 2003, p. 52) [grifo nosso].[5]

Importante frisar que “por polícia completa entende-se aquela que executa todas as fases da atividade policial: prevenção, repressão, investigação e apuração dos crimes”, ficando assim definido o ciclo completo de polícia por Silva (2003: 417).

Da mesma forma, Giulian (1998, p. 31) definiu o ciclo completo de polícia da seguinte forma:

O ciclo completo de polícia compreende a prevenção, a manutenção e a restauração da Ordem Pública, ou seja, desde o início do delito, passando pela sua prisão, seja pela Polícia Administrativa ou Judiciária, até sua apresentação à justiça e MP criminal, até a final e justa absolvição ou condenação, finalizando no sistema penitenciário. (RONDON FILHO, 2003, passim).

                        As Propostas de Emenda à Constituição (PEC) que tratam do ciclo completo em tramitação na Câmara dos Deputados, são as seguintes:

                        - PEC 430/2009, do Deputado Celso Russomanno[6] Altera a Constituição Federal para dispor sobre a Polícia e Corpos de Bombeiros dos Estados e do Distrito Federal e Territórios, confere atribuições às Guardas Municipais e dá outras providências. Cria a nova Polícia do Estado e do Distrito Federal e Territórios, desconstituindo as Polícias Civis e Militares. Desmilitariza os Corpos de Bombeiros Militar que passa a denominar-se: Corpo de Bombeiros do Estado e do Distrito Federal e Territórios, e institui novas carreiras, cargos e estrutura básica. Apensadas e subapensadas as PEC 432/2009, 321/2013, 423/2014, 431/2014, 127/2015, 89/2015 e 198/2016.

                       - PEC 432/2009, do Deputado Marcelo Itagiba – Unifica as Polícias Civis e Militares dos Estados e do Distrito Federal; dispõe sobre a desmilitarização dos Corpos de Bombeiros; confere novas atribuições às Guardas Municipais; e dá outras providências. Cria a Polícia e Corpo de Bombeiros dos Estados, Distrito Federal e Territórios e o Corpo de Bombeiros, e institui novas carreiras, cargos e estrutura básica. Apensada à PEC 430/2009, tem apensada a PEC 321/2013.

                       - PEC 423/2014, do Deputado Jorginho Mello – Altera dispositivos da Constituição Federal para permitir à União e aos Estados a criação de polícia única e dá outras providências. Prevê o ciclo completo de ação policial na persecução penal e da ação de bombeiro; altera a denominação das polícias militares para forças públicas estaduais e do Distrito Federal e Territórios e do corpo de bombeiros militares para corpo de bombeiros dos Estados e Distrito Federal e Territórios. Apensada à PEC 430/2009.

                       - PEC 431/2014, do Deputado Subtenente Gonzaga – Acrescenta ao art. 144 da Constituição Federal parágrafo para ampliar a competência dos órgãos de segurança pública que especifica, e dá outras providências. Apensada à PEC 423/2014.

                       - PEC 89/2015, do Deputado Hugo Leal – Altera a Constituição Federal para dispor sobre a reforma do sistema de persecução penal e dá outras providências. Apensada à PEC 430/2009.

                        - PEC 127/2015, do Deputado Reginaldo LopesAcrescenta dispositivos à Constituição Federal para permitir que a União defina normas gerais sobre segurança pública, cria o Conselho Nacional de Polícia, a ouvidoria de polícia, estabelece o ciclo completo da ação policial e dá outras providências. Apensada à PEC 430/2009.

                       No âmbito do Senado, são relevantes no tocante à matéria em apreço, ainda, as seguintes proposições:

                        - PEC 21/2005, do Senador Tasso Jereissati – Dá nova redação aos arts. 21, 22, 32, 144 e 167 da Constituição Federal, para reestruturar os órgãos de segurança pública.

                        - PEC 102/2011, do Senador Blairo Maggi – Altera dispositivos da Constituição Federal para permitir à União e aos Estados a criação de polícia única e dá outras providências.             

                       - PEC 51/2013, do Senador Lindbergh Farias – Altera os arts. 21, 24 e 144 da Constituição; acrescenta os arts. 143-A, 144-A e 144-B, reestrutura o modelo de segurança pública a partir da desmilitarização do modelo policial.

                       - PEC 321/2013, do Deputado Chico Lopes Altera o art. 144 da Constituição Federal, incluindo novos órgãos de segurança pública e dando providências correlatas. Apensada à PEC 432/2009.

                        - PEC 131/2015, do Senador Tasso Jereissati – Dá nova redação aos arts. 21, 22, 32, 144 e 167 da Constituição Federal, para reestruturar os órgãos de segurança pública. Altera a Constituição Federal para reestruturar a segurança pública; incorpora à polícia federal as funções de polícia ostensiva marítima, aérea, portuária, de fronteiras e de rodovias e ferrovias federais; estabelece que as ações de segurança pública serão desenvolvidas nos níveis federal, estadual e municipal; confere liberdade de organização às polícias estaduais; e dispõe que lei complementar federal estabelecerá as normas gerais do estatuto e do código de ética e disciplina das polícias federal, estaduais e do Distrito Federal, observadas as garantias e prerrogativas dos integrantes de carreira policial que estabelece.

                        Por ocasião dos trabalhos levados a efeito pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) que analisou, na Câmara dos Deputados, a PEC 430/2009 – apensadas as PEC 432/2009, 321/2013, 423/2013, 431/2014, 127/2015 e 89/2015 – que “altera a Constituição Federal para dispor sobre a Polícia e Corpos de Bombeiros dos Estados e do Distrito Federal e Territórios, confere atribuições às Guardas Municipais e dá outras providências”, foi realizado, durante o ano de 2015, um “Ciclo de 12 Eventos no DF e em dez Estados” (BRASIL, 2015).

                        Ao analisar os arquivos de áudio dos eventos, assim como a documentação produzida, verifica-se que as participações de várias autoridades, gestores, acadêmicos e representantes de classe se alternaram em termos de apoio e contrariedade à implementação do ciclo completo de polícia.

                       Não obstante as manifestações apaixonadas de lado a lado, restou evidente que a defesa do ciclo completo se baseia na dificuldade observada pela PM no tocante à sistemática ora imposta pela legislação, especialmente os procedimentos referentes ao termo circunstanciado (TC), previsto na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais), chamado, também, de termo circunstanciado de ocorrência (TCO), em vários Estados, termo de ocorrência circunstanciado (TOC), no Ceará e termo circunstanciado de infração penal (TCIP), no Paraná.[7]

                       O ciclo completo é sistematicamente defendido pelos oficiais das polícias militares e execrado pelos delegados de polícia. Exemplo disso é o teor das recomendações das diversas ‘cartas’ oriundas de encontros dos respectivos segmentos corporativos.

                        Assim, a Carta de Belém, firmada pelos delegados de polícia civil e federal, durante o XIII Congresso Nacional de Delegados de Polícia de Carreira, no período de 11 a 14 de novembro de 2003, recomendava, dentre outros objetivos:

6 – propugnar pela manutenção das atribuições constitucionais da Polícia Civil e da Polícia Federal, com a preservação da exclusiva competência para realização de investigações criminais, com o inquérito policial sendo o instrumento próprio para tal fim, com a presidência do Delegado de Polícia (ADEPOL, 2003).

                       Por seu turno, os oficiais militares estaduais, durante o XV Encontro de Entidades da categoria, realizado em 27 de agosto de 2015, divulgaram a Carta de Natal, em que pontuavam, dentre outras recomendações:

I – Repudiar qualquer iniciativa tendente a manter ou reforçar o atual sistema policial marcado por meias polícias e por uma resolutividade de infrações penais que, vergonhosamente, tem atingido em média míseros 5% (cinco por cento), situação única no mundo no que concerne a ineficiência.

II – Implantar o Ciclo Completo de Polícia, para todas as instituições policiais, a exemplo de todos os países, com destaque para as nações desenvolvidas, permitindo que os atos lavrados sigam diretamente ao Poder Judiciário, deste modo: – possibilitando uma reforma estrutural com redução significativa de custos – aumentando a fidedignidade das informações prestadas; – desburocratizando o atendimento policial ao cidadão; – alcançando maior eficiência de todas as instituições policiais; a ser consubstanciado com a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 423/2014, a “PEC da Segurança” bem como outras que contenham a implantação do Ciclo Completo.

III – Reforçar o conceito de autoridade policial, conforme constantemente ratificado pelo STF, no contexto da Lei 9.099/95 como o primeiro policial atendente da ocorrência in loco, cabendo a esta instituição o registro do fato com o encaminhamento ao Poder Judiciário, refutando as tentativas meramente corporativistas, que têm pressionado o Congresso Nacional a concentrar tal conceito em um único cargo (FENEME, 2015).

                       O sociólogo Luís Flávio Sapori, representando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, durante intervenção no ciclo de eventos mencionado, identificou três opções de arranjo institucional que viabilizam o ciclo completo de polícia no Brasil: 1) polícias estaduais unificadas; 2) polícias militares e polícias civis de ciclo completo; e 3) ciclo completo por tipo de crime.

                        Segundo informa o Deputado Subtenente Gonzaga, em sua Justificação, como primeiro autor da PEC 431/2014 (apensada à PEC 423/2014), o principal problema são as distâncias a serem percorridas para a formalização de um simples formulário que poderia ser preenchido no local do fato:

Apenas a título de exemplo, Minas Gerais, possui 853 municípios que são atendidos em sua integralidade pela Polícia Militar, único órgão do Estado presente em todas estas localidades e em mais de 200 distritos. Neste Estado, a Polícia Civil consegue manter seu atendimento 24 horas por dia (atendimento noturno, feriados e finais de semana) em apenas 64 Municípios, o que leva, às vezes, a um deslocamento de policiais militares por mais de 300 km de suas sedes para fazer um registro de ocorrência, na maioria das vezes de crime de menor potencial ofensivo. Com o agravante de ter que conduzir vítima, agente e testemunha, num verdadeiro cárcere privado deste.[8]

                        Em razão de argumentações dessa natureza, vários Estados obtiveram liminares nos órgãos judiciários, autorizando as polícias militares a elaborarem os TC autonomamente, sem a necessidade de submeter as respectivas ocorrências ao crivo do delegado de polícia civil. Consta em depoimentos divulgados durante os eventos, que onde assim se estabeleceu, a sistemática funciona, com ganhos para a sociedade, as corporações policiais e o sistema de justiça criminal como um todo.

                        Por seu turno, os delegados de polícia propugnam a exclusividade, para si, da denominação ‘autoridade policial’, nos termos do Código de Processo Penal (CPP), aprovado pelo Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, razão porque a lei não autorizaria a formalização do TC por qualquer policial.[9] Tanto assim é entendido, que os próprios policiais civis, agentes da autoridade policial, não lavram o TC, mas levam o caso à delegacia para que o delegado decida.

                       Obtemperam os delegados que eles são os primeiros garantidores dos direitos do cidadão – ao que os militares contestam serem eles, pelo contato inicial com o cidadão –, temendo pelo eventual desrespeito a esses direitos por parte dos policiais militares, acostumados a tratar com delinquentes no calor dos fatos. A ida aos quarteis para efeito de lavratura do TC é apontada como temerária, ao que os militares contrapõem referências históricas de que era nos porões das polícias civis que ocorriam as torturas em passado não muito distante. Por outro lado, o desconhecimento das filigranas jurídicas necessárias ao correto enquadramento da suposta infração penal seria dificuldade adicional imposta aos militares, além da inviabilidade de se lavrar, ‘no capô da viatura’, um documento formalmente exigido pela lei.

                        Enfim, não há notícia de que tenha havido desrespeito aos envolvidos, nessas circunstâncias. A propalada vantagem conferida à polícia civil, no sentido de poder dedicar-se a casos mais graves, igualmente não foi suficientemente divulgada, se é que se verificou. Não há, também, notícia de que formulários elaborados pelos militares tenham sido rejeitados pelos órgãos judiciais. A possibilidade de retrabalho por parte da polícia civil é possível, havendo relatos dessa ocorrência, não quantitativamente demonstrada.

                        Não obstante, há situações em que provavelmente haja alguma dificuldade e mesmo prejuízo à persecução penal ou, na pior hipótese, agravo aos direitos do infrator. Cite-se, exemplificadamente, as hipóteses de necessidade de laudo preliminar de constatação, no caso de lesão corporal, sem o qual seria temerária a lavratura de qualquer procedimento.

                       Não se aplicariam, naturalmente, as medidas protetivas previstas na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher (...)”, visto que “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”, nos termos de seu art. 41.

                        Bem demonstra que o tema não é pacífico o resultado da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg), realizada em 2009, com a participação de gestores, trabalhadores e sociedade, na qual foram aprovados dez princípios e quarenta diretrizes, dentre estas as seguintes, completamente contraditórias:

4. 2.6 A – Estruturar os órgãos policiais federais e estaduais para que atuem em ciclo completo de polícia, delimitando competências para cada instituição de acordo com a gravidade do delito sem prejuízo de suas atribuições específicas. (868 VOTOS)

15. 2.6. C – Rechaço absoluto à proposta de criação do Ciclo Completo de Polícia. (446 VOTOS) (BRASIL, 2009, p. 81 e 82).

 

3  MODELO DE POLÍCIA

                        Não obstante o foco do presente trabalho ser a análise do ciclo completo de polícia, cuida-se que a alteração do modelo atual, flexibilizando-o, constitui medida necessária para que eventual aglutinação de atribuições seja deferida às polícias.

                       Assim, o modelo policial existente, com duas polícias de ciclo incompleto (uma atuando na prevenção e repressão imediata e outra na investigação), sendo aquela militarizada, tem sido causa de inúmeras discussões na sociedade e no Congresso Nacional. Movimentos pelo ciclo completo de polícia, pela desmilitarização e pela unificação das polícias tem ganhado força e dominado parte da agenda de segurança pública no Parlamento.

                       Muito se tem discutido, portanto, a respeito de remodelação das forças policiais, sob vários argumentos. Então, há quem defenda a desmilitarização da polícia militar e a unificação desta com a polícia civil, pois ambas apresentam uma dualidade nem sempre compreensível, por sobrepor competências e instâncias administrativas custosas ao erário.

                       Atacando aspectos formais, há quem propugna pela extinção do inquérito policial e até do cargo de delegado de polícia ou a inexigência de o mesmo ser bacharel em direito, sob o argumento de que qualquer policial pode analisar o fato da vida e enquadrá-lo sob o aspecto de subsumir-se ou não a uma infração penal legalmente tipificada.

                       Entremeando essas propostas, surgem as de eventual transformação das atuais guardas municipais em polícias municipais, criação de novas forças policiais, especialmente no âmbito federal, como polícia portuária, universitária e outras. A discussão que nos interessa no presente trabalho, enfim, é a extensão do chamado ciclo completo a todas as polícias.

                        A adoção do ciclo completo passa pela constatação de que a diferença entre as polícias estrangeiras e as brasileiras é que aquelas executam o chamado ciclo completo de polícia, enquanto as polícias estaduais brasileiras possuem competência parcial desse ciclo, cabendo às policias militares o policiamento preventivo-ostensivo e às civis, o repressivo-investigativo.[10]

                       Isso significa que, na área de sua competência, um órgão policial estrangeiro começa o ciclo com a ‘prevenção’ e, caso não impeça o cometimento do crime, executa a ‘repressão imediata’, prendendo o infrator; ou busca a ‘repressão mediata’, investigando e descobrindo de quem se trata e, em qualquer dos casos, reunindo as provas que permitirão seja ele processado e julgado pelos seus atos, podendo, afinal, ser condenado e cumprir a pena imposta.

                       Alguns estudiosos defendem a tese de que ambas as polícias, civil e militar, deveriam executar o ciclo completo, cuja adoção demandaria, contudo, o delineamento da competência de cada força, pois não faz sentido duas polícias executando as mesmas tarefas no mesmo território. A competência, nesse caso, poderia ser territorial (ratione loci) ou material (ratione materiæ), isto é, delimitada quanto a uma área geográfica onde atua o órgão policial, ou quanto ao tipo de crime que se deve evitar ou reprimir.

                        Como exemplo, a Gendarmerie francesa (militar), antiga Marechaussée, atua nas zonas rurais e cidades pequenas de até vinte mil habitantes, enquanto a Police Nationale (civil) atua nas zonas urbanas das cidades maiores. A competência é estabelecida em razão do lugar. Atualmente ambas têm atuação nas áreas periurbanas, o que tem causado certa redução da efetividade (LÉVY, 1997). Essa circunstância bem demonstra a insensatez de haver duas polícias na mesma base territorial com a mesma competência.

                       Importante anotar que a polícia de feitio militar usa uniforme (farda) todo o tempo, enquanto a polícia de caráter civil pode estar à paisana (segmentos de investigação, inteligência) ou uniformizada (prevenção, ações táticas, atividades que exijam contato ostensivo com o público), ocasiões em que trajam coletes identificadores ou uniformes especiais.[11]

                        A polícia dos Estados Unidos, por sua vez, também utiliza o sistema de competência territorial, mas noutra óptica. Como há legislação penal federal, estaduais e até municipais diversas, a polícia municipal (ou do condado) tem competência plena em sua área de atuação. Se o crime cometido extrapola o interesse do município ou envolve vários condados ou municipalidades, ou, ainda, trata-se de crime estadual apenas, o órgão policial competente é o do Estado. Tratando-se de crime federal ou que afete mais de um Estado, a competência é do Federal Bureau of Investigation (FBI), do United States Marshals Service (USMS) ou da Drug Enforcement Agency (DEA).[12]

                       A competência pode ser, ainda, de outras agências especializadas, como correios, receita federal ou alfândega, por exemplo, uma vez que uma característica do sistema repressivo criminal dos Estados Unidos é a multiplicidade de órgãos e até a dificuldade de se enquadrá-los como agências policiais ou não, donde a imprecisa noção de somarem entre pouco mais de dez mil a mais de vinte mil, especulando alguns que atinjam quarenta mil órgãos distintos.[13]

                        Essa multiplicidade de órgãos policiais é outro dos argumentos esgrimidos contra a unificação das polícias estaduais no Brasil, no sentido de que a existência de 54 polícias estaduais não seria empecilho para a atuação, dado o exemplo norte-americano. Mais uma vez, todavia, o raciocínio é incompleto, pois nos exemplos citados não há, em regra, uma sistemática sobreposição de competências. No Brasil, portanto, há a atuação simultânea de duas ditas ‘meias-polícias’ num mesmo território, cada uma executando uma fase anticrime (MARIANO, 2004, p. 51).

                       Se houvesse a extensão do ciclo completo para ambas, seriam duas polícias com competências simultâneas no mesmo território, a menos que, conforme já proposto pelos oficiais das polícias militares, fosse dividido o território entre ambas, ou, ainda, atuando no mesmo território, tivessem competências materiais distintas. Aí se acentuariam os problemas de caráter administrativo, hoje tidos como dos mais fortes argumentos favoráveis à unificação das polícias, que é a multiplicação de órgãos de direção ou comando, de assessoramento e de apoio à atividade-fim. Impediria, também, a inevitável economia de escala decorrente da aglutinação de órgãos de atribuições congêneres, oriundos de instituições diversas.[14]

                       Outro problema decorrente seria a dificuldade de se alocar, em tempo hábil, recursos humanos para as duas espécies de atividade, o que oneraria mais fortemente as polícias civis, de menor efetivo e, portanto, sem condições de escalar policiais para realizar a prevenção. Por outro lado, não seria conveniente que os mesmos policiais que atendessem a uma ocorrência com eventual uso da força adotassem os procedimentos decorrentes. Disso deriva a necessidade de segmentação e treinamento prévio à atuação repressiva mediata. Assim, mesmo que a atividade de investigação, caso necessária, seja executada pelo mesmo órgão, não é conveniente que o seja pelo mesmo policial.

                       Ademais, a competição atual entre esses órgãos provavelmente se acirraria, não havendo por que supor que se adequariam às novas competências se às atuais não se conformam, quando as competências são estanques. O pior, no limite, seria a omissão naquelas situações em que não houvesse ganho (político) imediato para a força que primeiro tomasse conhecimento do evento ou para seus integrantes em particular, circunstância que colabora para incrementar a taxa de atrito.[15]

                       Tema pouco regulado é o da responsabilização pelos resultados (accountability) das polícias brasileiras. As medidas comumente utilizadas para avaliação do trabalho policial, especialmente a partir da década de 1970 é o ‘tempo de resposta’, quanto à polícia preventiva e a ‘taxa de resolução’, no tocante à repressiva (SILVA FILHO, 2001, p. 1).

                       Tempo de resposta significa o tempo que a polícia gasta desde o acionamento até a chegada da radiopatrulha ao local do evento, sendo considerado ótimo o tempo de dez minutos.[16]

                       A taxa de resolução (ou taxa de elucidação, taxa de esclarecimento, ou índices de casos resolvidos, clearance rate em inglês) refere-se ao percentual de casos resolvidos, isto é, nos quais se aponta a autoria da infração penal, para a subsequente atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário. No Brasil considera-se que tais índices giram em torno de cinco a dez por cento, abaixo da média mundial, não havendo estudos ou estatísticas confiáveis, em nível nacional, para uma efetiva comparação. Sabidamente tais taxas variam conforme a espécie criminal e, além disso, não se dispõe de uma metodologia unívoca para o cálculo.[17]

                       O tempo de resposta está ligado a um conceito considerado ultrapassado, que é o da conduta reativa da polícia, isto é, a atuação mediante demanda, ficando as guarnições das viaturas a postos, em movimento ou aquarteladas, à disposição da população para o atendimento da ocorrência depois de acionados por uma central de rádio, donde o nome comum de radiopatrulhamento.

                       Hoje se propõe um modelo de polícia proativa, em que o policiamento de proximidade (ou comunitário) aliado a uma boa gestão do sistema de informações e das técnicas de georreferenciamento ou geoprocessamento das áreas de maior incidência criminal (manchas criminais ou hotspots, ‘áreas quentes’). A acurada análise criminal desses dados permitiria a desejada efetividade na pacificação social, na medida em que tal procedimento consiste na essência da prevenção, isto é, evitar o cometimento de crimes.

                       Quando adota a tática reativa a polícia preventiva, dita ‘ostensiva’, torna-se uma polícia de ‘repressão imediata’, isto é, limita-se a prender (em flagrante delito). Destarte, a prevenção propriamente dita, que evitaria o cometimento de crimes, resta prejudicada, uma vez que o foco atual se cinge ao crime que está sendo ou acaba de ser cometido. Essa circunstância gera um fenômeno indesejável, que é o entulhamento das delegacias de polícia com casos simples que geram providências de cunho cartorário.

                       Aponta-se como equivocada, portanto, a estratégia de atendimento por demanda via central de despacho, modelo que deveria ser utilizado subsidiariamente a uma opção principal de policiamento presencial seletivo.[18]

                       Não é despiciendo recordar que as delegacias de polícia registram, nos plantões, além dos autos de prisão em flagrante, ocorrências policiais de casos passados ou que não tenham configurado flagrante delito, atividade que absorve grande parcela do tempo despendido nas atividades da unidade policial. Certo é que boa parte desses registros poderiam ser feitos por meios informatizados, nas chamadas ‘delegacias eletrônicas’, disponíveis em vários Estados, mas não utilizadas de forma ampla.

                       Uma das opções esgrimidas, portanto, é a extensão do entendimento de que a ‘autoridade policial’ referida no art. 69 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais)[19], pode ser qualquer policial que se depare com a infração penal. Tal entendimento é acolhido e defendido pelas polícias militares e refutado pelas polícias civis e federal.

                       A argumentação dos militares é no sentido de que em geral o primeiro policial a comparecer a local de crime é o policial militar, não sendo racional aguardar-se a presença da polícia civil ou o encaminhamento do caso à delegacia. Os policiais de natureza civil defendem a legalidade, sob o argumento de que o próprio Código de Processo Penal, ao utilizar a expressão ‘autoridade policial’, refere-se especificamente ao delegado de polícia.[20]

                        Ao se debruçar sobre a adequação do atual modelo de polícia à realidade do País, é preciso frisar que a expressão ‘modelos de polícia’, contudo, não têm o mesmo significado da expressão  ‘padrões de policiamento’. Verificou-se no último quarto do século XX um rápido aperfeiçoamento das instituições policiais do mundo todo, seja no aspecto do aparelhamento, com armamento mais eficiente, inclusive não letais, e equipamentos mais modernos, seja, especialmente, no tocante à sua inserção no ambiente tecnológico e da informática. Aumentaram-se os efetivos, alocaram-se mais recursos, adotaram-se novos métodos e doutrinas, assim como novas estratégias de policiamento, como o policiamento motorizado, o policiamento comunitário (de proximidade), o policiamento orientado para problemas, mais reativo, conforme a demanda da comunidade;  e outras inovações.[21]

                       Ora tendiam a reforçar o conceito de lei e ordem (law and order), seguindo proposições do tipo ‘teoria das janelas quebradas’ e ‘tolerância zero’, ora buscavam a volta às origens, inspirado no sistema britânico de autopoliciamento das comunidades. Todos esses avanços em termos de recursos, assim como as tentativas de reforma dos métodos, entretanto, não foram suficientes para frear a criminalidade crescente no Brasil e no mundo.

                        As polícias podem se estruturar para prover segurança à sociedade ou ao Estado. Na concepção de Monjardet (2003), ao abordar a tipologia das polícias, há três modalidades de atuação policial, segundo o enfoque se dê na polícia de ordem (política), polícia criminal (repressiva) ou polícia urbana (preventiva, comunitária, de proximidade).[22] Os clientes dessas vertentes policiais seriam, respectivamente, o Estado, o criminoso e o cidadão. Discorre o autor que “quanto mais dividida a sociedade, quanto mais conflituoso seu pluralismo, tantas maiores são as possibilidades de a polícia de repressão (polícia criminal) ser relativamente a mais desenvolvida”, complementando que “quanto mais consensual e descentralizado o poder, mais os controles sociais internos são poderosos e limitam a delinquência organizada, mais o aparato policial é limitado à polícia de segurança pública, vigia urbana” (MONJARDET, 2003, p. 281 et seq.).

                       Na mesma linha é o ensinamento de Bayley (2006). Segundo esse autor a polícia pode atuar na aplicação da lei, investigação criminal, prestação de serviços, controle de multidões e regulação de tráfego (BAYLEY, 2006, p. 233).

                        Toda polícia, todavia, tem algo de reativo e de proativo e, nesse caso, cabe observar – embora não seja o foco do presente estudo – que a opção por uma só polícia facilita a busca do equilíbrio sobre quanto de reativo e quanto de proativo deve haver, conforme haja deslocamento dos criminosos para novas áreas, substituição dos crimes mais comuns ou alteração no seu modo de operação. Presta-se, igualmente, à alocação de recursos humanos a um ou outro segmento, conforme se altere a proporção na busca desse equilíbrio, assim como às atividades preventivas ou repressivas.

                       Então, as modernas estratégias de policiamento, como o comunitário ou de proximidade, o orientado para a solução de problemas e o fundado na análise criminal podem favorecer, também, uma polícia única.

                        Embora a polícia de Estado (polícia de ordem, às vezes polícia secreta) possa atuar no âmbito territorial de toda a nação, sua atuação é pontual quanto aos alvos de sua ação, ou seja, as pessoas a serem vigiadas, protegidas ou reprimidas. Já as polícias destinadas a proteger a população se estruturam, o mais das vezes, em escala circunscricional, abrangendo o território do ente instituidor.

                       Resumindo, no nível macro, temos no Brasil o problema de haver duas polícias estaduais de meio ciclo, PM e PC, que não se resignam com suas atribuições – não executadas a contento – e fazem o trabalho uma da outra, gerando atritos.[23]

                       Além disso, não há uma polícia federal preventiva propriamente dita e, no nível estadual, as polícias civis mais atendem a demandas imediatas e resolvem problemas interpessoais que propriamente investigam, no mais das vezes por escassez de recursos ou excesso de demanda cartorária, tais como registro de ocorrências e lavraturas de autos de prisão em flagrante, situação abordada linhas atrás, ou o que é pior, devido a ambos os fatores. Por fim, se carece de base constitucional para que haja polícias locais (municipais ou metropolitanas), que poderiam muito bem atenuar os problemas da violência endêmica.

                       O fato é que o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP), elaborado no ano 2000, reconheceu o esgotamento do modelo dualizado de polícia, com instituições policiais de ciclo incompleto. Propôs atualizá-lo mediante a implantação de um Sistema Único de Segurança Pública (Susp) nos Estados e no âmbito da União, com interface com os municípios por meio das guardas municipais.

                       Não se tratam de mudanças profundas, mas com certa tendência a criar mais dificuldades à ação das polícias que as observadas atualmente. Uma delas é o objetivo de criação paulatina de uma ‘ou várias’ polícias estaduais de ciclo completo.[24] Entretanto, repise-se, não faz sentido mais de uma polícia de ciclo completo numa mesma base territorial.

                        Dentre as mudanças propostas mais impactantes do PNSP estão: extinção dos tribunais e auditorias militares estaduais; elaboração de uma lei orgânica única para as polícias estaduais; desvinculação entre as polícias militares e o Exército; extinção da indiciação[25] durante o inquérito policial; piso nacional de salário para as polícias; criação de ouvidorias de polícia autônomas e independentes; e desconstitucionalização do tema da segurança pública, a título de conferir liberdade aos Estados para melhor disporem sobre suas polícias, num pretenso reforço do princípio federativo.

                       Vê-se, portanto, que mudanças são necessárias.

                        Ao se vislumbrar a hipótese de reformulação do modelo de polícia e de policiamento existente no Brasil, algumas considerações devem anteceder a propositura de soluções, como pressupostos básicos a conferir consistência a qualquer sugestão. Antes, porém, são necessárias algumas indagações acerca da real necessidade de se alterar o modelo e porque as tentativas a respeito malograram.

                        Pode-se especular, no primeiro caso, que entre a incerteza acerca da necessidade e a dificuldade de se comprová-la senão testando outro modelo, o ideal, em termos de legislação pertinente, é facultar a coexistência de modelos distintos. Desta constatação, não importa muito definir se haverá apenas uma polícia para cada nível da federação, o que, em tese e aparentemente, traria interessante economia de escala em termos de custos. Partir-se-ia, então, com base na argumentação volvida, da premissa de que o modelo de polícia cristalizado na Constituição interfere, de forma negativa, na efetividade das ações das agências policiais, em particular, e no provimento de segurança pública, como um todo.

                       Noutro passo, o insucesso das propostas de mudança deve-se mais a arraigadas concepções corporativas refratárias à ideia que a inquestionáveis virtudes do modelo atual. Demais disso, se não houver uma proposta de mudança ‘pactuada’ entre os vários níveis da federação e os diversos atores envolvidos, pouco se avançará. Muitas variáveis afetariam qualquer empreitada dessa envergadura e a ausência delas nas propostas até então apresentadas pode ter contribuído para o malogro referido.

                       Um dos aspectos que sempre geram polêmicas no tocante à alteração do modelo policial, é a questão de as polícias militares e corpos bombeiros militares serem consideradas reserva do Exército, o que vem sendo reproduzido em todas as Constituições desde 1934 (art. 167) e, ainda, suas forças auxiliares, aspecto constitucionalizado desde 1946 (art. 183). Esse comando se aplica nos casos de mobilização, nos estados de emergência constitucional, isto é, estado de defesa e estado de sítio, sendo que este contempla as hipóteses de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

                       Entende-se, todavia, que nos dias atuais essa destinação é desnecessária, pois a mobilização, que pode abranger todos os segmentos da sociedade, no caso das forças policiais deve se restringir à atuação na defesa interna e não para combate em teatros de operações situados dentro ou fora do território brasileiro. Além de as Forças Armadas disporem de considerável efetivo de reservistas, a opção de utilizar as forças militares estaduais como combatentes implica duas situações inadequadas: 1) a formação das polícias e bombeiros com o viés de combatente, amplamente rejeitada pela sociedade, embora ainda realidade; 2) a supressão de considerável contingente que precisaria continuar, durante o período de mobilização, prevenindo o crime, mantendo a ordem e, no caso dos bombeiros, executando atividades de defesa civil.

                       No caso de guerra as Forças Armadas vão para o combate, seja em terras estranhas ou no próprio país. Enquanto isso, as forças policiais permanecem no território nacional, garantindo a tranquilidade pública. Conforme haja baixas ou necessidade de aumento do efetivo empregado, convocam-se os reservistas (que não são os militares estaduais), para serem treinados e mandados para o front. A defesa do território deve ser garantida, ainda, pelas Forças Armadas, sob pena de se afetar o policiamento ordinário numa situação evidentemente mais gravosa que em ambiente pacífico, diante da insegurança e temor generalizado da população frente a uma provável retaliação do inimigo.

                       A contribuição dos militares estaduais na defesa do território é prosseguir na execução de suas atribuições de defesa interna e defesa civil. Se o teatro de operações se situar no país, o raciocínio é o mesmo: as forças armadas garantem a defesa do território, seja impedindo sua conquista, seja retomando áreas invadidas. Enquanto isso, cabe às forças policiais manter a segurança pública, no sentido de preservar a ordem interna, prevenindo e impedindo o recrudescimento da criminalidade, os saques, as vinganças particulares, eventos facilitados pelo caos da guerra, além de adotar as medidas de defesa civil ordinárias e as decorrentes dos combates.

                       Assim, seja na hipótese de convocação durante os estados de emergência constitucional (estado de defesa e estado de sítio), seja na de mobilização, no caso de guerra, o esforço das forças militares estaduais continua voltado para assuntos não bélicos. A convocação de reservistas que sejam policiais – na hipótese de uma eventual polícia única – e a mobilização – que inclui outros segmentos da sociedade – pode ser feita sem que se considerem as ‘forças auxiliares’ reservas do Exército, bastando tal previsão constitucional. Entretanto, mesmo mantendo-se o modelo atual e a condição de reserva ou na hipótese de desmilitarização, dificilmente as polícias – então de caráter civil – seriam convocadas para o combate, ainda que como reservistas, mas seriam mobilizadas para auxiliarem no esforço de guerra, aliás como já fazem, na tentativa de pacificação social.

                        Noutro passo, cuida-se que a manutenção constitucionalizada das agências policiais existentes de forma hermética,  numerus clausus, não permitiria aos governos dos três níveis da federação adotarem novas conformações, supondo-se que as ali previstas não estejam adequadas ou suficientes ou, ainda, sejam redundantes para o provimento de segurança pública.

                        Questões como a desmilitarização, o ciclo completo, a desconsideração das forças militares estaduais como forças auxiliares e reserva do Exército ocorreriam por força de adoção de outro modelo, como mera consequência. Atualmente essas questões são tratadas como centrais, o que não se afigura adequado. A propósito de desmilitarização, por exemplo, repudiada pelos escalões superiores das forças militares estaduais e até das Forças Armadas, é possível – e recomendável – que uma nova polícia estadual tenha caráter civil. Nada impede, porém, que se mantenha a estética militar – não a estrutura (Mariano, 2002) ou a forma de atuação –, inclusive adotando-se a taxionomia de seus cargos, como já se propôs, até como forma de evitar a traumatização da mudança e a perda das referências contidas nos arquétipos militares (MELIM JÚNIOR, 2002, p. 255).[26]

                        É equivocada, portanto, a ideia de que uma polícia estadual seria extinta e assimilada por outra, ainda que houvesse a criação de uma nova polícia, pois o correto seria dizer que ambas seriam transformadas, como já ocorreu algumas vezes desde os primórdios da polícia no Brasil.[27]

                       A transformação não se pode fazer por mero e único ato legislativo, sabidamente, vez que a faculdade de criação de novo órgão deve estar associada à faculdade conferida aos integrantes do antigo órgão, de opção pelo novo. À medida que os não optantes se aposentassem, os cargos seriam extintos. Assim, quando os últimos cargos fossem extintos, os órgãos já estariam em transformação por muito tempo e seus integrantes incorporados ao novo órgão, por evolução natural e consequente dos primeiros.

                        Supondo, então, que o ideal seja uma única polícia em cada nível da federação, haveria algumas questões envolvidas a ser deslindadas, que passaremos a abordar.

                       Uma delas é se seria aconselhável facultar a criação de polícias municipais em todos os municípios ou em apenas alguns. Como não há a tradição de polícia municipal no Brasil, reputa-se conveniente a autorização condicionada, podendo-se apontar, nesse caso, duas formas principais de condicionamento.

                       A primeira é utilizar o critério populacional, isto é, apenas municípios mais populosos poderiam criar sua polícia. Nesse caso, se transformada a guarda municipal em polícia, apenas por disposição constitucional, ainda que condicionado à satisfação de tal requisito, se poderia autorizar a transposição de cargos, por exemplo. Solução mais simples é permitir a coexistência de polícia e guarda municipal, o que vai, porém, de encontro ao critério de economicidade.

                       O segundo condicionamento, aplicável apenas na hipótese de transformação da guarda municipal, é criar indicadores de desempenho que credenciassem o órgão à transformação pretendida. Nessa hipótese, a criação de um conselho constitucional com poderes deliberativos e normativos, poderia viabilizar a instância competente para a avaliação pertinente.[28]

                       A propósito o conselho constitucional deveria ser responsável por gerir o fundo constitucional analisado adiante. Conselhos estaduais e municipais congêneres deveriam existir obrigatoriamente e ser responsáveis, igualmente, pela gestão dos fundos pertinentes, também obrigatórios, que permitissem o repasse de recursos financeiros dos níveis federal e estadual até o municipal, fundo a fundo, segundo critérios predefinidos.

                         A redação constitucional deve permitir, portanto, que as polícias de nível federal e as de nível estadual sejam mantidas ou unificadas e, ainda, que seja possível a criação de um ou mais órgãos policiais. A experiência é que trará saberes para se aquilatar da validade de um ou de outro modelo.

                        As polícias brasileiras, embora similares do ponto de vista estrutural, são muito diversas em termos de efetivo – que depende do tamanho da população – e, principalmente, de remuneração de seus integrantes, o que tem mais afinidade com a riqueza ou regularidade das contas de cada Estado. A diferença se faz sentir, também, entre as polícias civil e militar de um mesmo Estado. Isso gera insatisfação generalizada na força menos prestigiada e, por consequência, acentua as tensões.

                       Dessa forma, o enquadramento dos policiais numa eventual nova polícia ficaria comprometido se não se resolvesse o problema das diferenças remuneratórias, pelo menos entre polícias do mesmo Estado.         

                        Eventual linearidade pretendida quanto ao funcionamento das polícias estaduais exigiria, necessariamente, o equacionamento quanto à remuneração, conforme já tentado em relação a um piso salarial, cujo exemplo é a PEC[29] 300/2008, em tramitação na Câmara dos Deputados. As diferenças remuneratórias são, porém, tão expressivas, que certamente muitos Estados não teriam condições de equalizá-las de imediato e mesmo a médio prazo, sob comando de eventual dispositivo constitucional, por exemplo, sem que houvesse aporte de recursos adicionais.

                       Ocorre que a maioria dos entes da federação comprometem ampla parcela de seus orçamentos com custeio da máquina administrativa e, nesse tocante, o maior percentual se refere a pagamento de pessoal. Nos termos da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) os gastos com pessoal não podem superar cinquenta por cento das receitas correntes líquidas no caso da União e sessenta por cento, no caso dos demais entes da federação. O parágrafo único do art. 22 da mencionada lei estabelece, inclusive, o ‘limite prudencial’ de 95% para tais gastos, a partir do qual se operam várias vedações quanto a atos de gestão de pessoal que gerem despesas.

                       Destarte, a menos que se adotem pelo menos duas medidas essenciais, torna-se muito difícil a alocação de recursos para essa medida simples, mas básica, para que o modelo de polícia adquira alguma unidade.

                       Uma delas seria a criação de um fundo constitucional, não sujeito, portanto, em tese, a contingenciamentos.

                       A outra, que a União, por meio do Poder Executivo Federal, protagonize o financiamento da segurança pública, mediante transferências tributárias constitucionais aos demais entes. Essas transferências, contudo, seriam feitas segundo critérios objetivos, vinculados ao atingimento de metas predefinidas, providência essencial para evitar que fiquem sujeitas aos caprichos das injunções politicoeconômicas.

                       Não basta, portanto, propor integração e se criar programas com nomes pomposos sob siglas de apelo midiático para reduzir a violência e a criminalidade, se não se equalizar a remuneração dos profissionais de segurança pública.

                        Outro ponto relevante é o regime de trabalho e o previdenciário. O regime de trabalho em termos de jornada – expresso geralmente como carga semanal, em horas – é semelhante aos dos servidores públicos em geral.

                       Um problema a ser resolvido é o da diversidade de escalas de serviço, cujos períodos de folga em geral são tidos como generosos demais. Tanto é assim, que geram outro problema, o trabalho informal remunerado que os policiais prestam para empresas e particulares, o chamado ‘bico’, um dos fatores geradores da alta vitimização policial.[30] O ‘bico’ tanto pode ser efeito da baixa remuneração, como concausa, na medida em que muitos policiais obtêm remuneração maior que a formal nessas situações, sob o beneplácito dos gestores, que não se esforçam, em consequência, por propiciar-lhes melhor remuneração.[31]

                       Tais situações geram, ainda, oportunidades para negócios escusos com o narcotráfico, a criminalidade organizada ou mesmo para empreendimentos autônomos.

                       Os exemplos mais eloquentes, relatados pela CPI do Exermínio no Nordeste[32], são as milícias privadas ou ‘araques’, que fazem a chamada ‘extorsão branca’, explorando e impondo, com exclusividade, ‘concessões’ e ‘taxas de segurança’, além dos justiceiros do tipo ‘esquadrões da morte’. Essas situações perpetuam alta instabilidade social, devido ao elevado desgaste da polícia perante a opinião pública, oriundo da assimetria de atuação de forças policiais distintas.

                        Importante questão é o sistema de recrutamento. Discute-se acerca da ineficácia de carreiras distintas dentro de um mesmo órgão, pugnando-se pela carreira única e mesmo pelo cargo único, com única entrada, pela base. A situação é dificultada pela vedação constitucional ao chamado provimento derivado, não podendo o policial ser promovido a outro cargo qualquer, mesmo de nível idêntico, senão mediante concurso público.

                       A maioria das polícias de outros países, entretanto, admite o recrutamento exógeno – ou lateral – e o endógeno.[33] O recrutamento endógeno poderia se dar por reserva de percentual de vagas ou por atribuição de pontos em prova de títulos por tempo de serviço policial. Alteração nesse sentido dependeria de o constituinte derivado manter a existência de um regime trabalhista diferenciado para os policiais, assim como já existe para os militares.[34]

                        É comum em outros países, igualmente, o recrutamento lateral, como forma de ‘oxigenar’ os níveis médios e superiores da hierarquia com o espírito inovador e o entusiasmo típicos dos jovens, o que parece salutar.

                       Além disso, eventual transposição por mandamento constitucional só poderia ser efetuado para uma carreira com diversidade de cargos, a fim de permitir o enquadramento mais justo possível de cada um ao longo da carreira.

                       Outra situação peculiar é a dos peritos, cujas atividades pressupõem formação acadêmica específica.[35] Há uma tendência atual, no Brasil, para a desvinculação dos peritos oficiais de natureza criminal dos órgãos originais, geralmente as polícias civis. Nos casos em que os peritos fossem mantidos na estrutura policial, só se pode diferenciá-los dos demais profissionais mediante existência de um cargo próprio ou, quando muito, num regime de diversidade de cargos, pela adoção de um sistema de ‘atribuição’ funcional específica.

                       A Figura 1 informa que na Guardia Civil da Espanha, por exemplo, há três ‘escalas’ de ingresso direto e outras, de acesso interno, isto é, de recrutamento endógeno. Com exceção das ‘escalas facultativas’, destinadas a peritos e outros cargos da atividade-meio, há duas formas de entrada, pela base e pelo nível superior, esta de natureza lateral, o que equivaleria, no Brasil, aos círculos de praças e de oficiais no âmbito dos militares, por exemplo.

Figura 1 – Formas de recrutamento na Guarda Civil da Espanha.

Fonte: <http://www.guardiacivil.es>.

                       Quanto ao regime previdenciário, atualmente os policiais civis e militares possuem o direito à aposentadoria aos trinta anos de serviço, se bem que pela via de instrumentos legais diversos. Esse direito, como outros, necessitaria ser preservado, tanto para efeito de reconhecer o serviço policial como degastante ao longo da vida, dada sua periculosidade intrínsceca, como para manter o estímulo de transposição para o novel órgão, se fosse o caso.

                       Polícias de vários países não possuem direito a sindicalização e greve, especialmente as europeias, mas as polícias brasileiras de natureza civil adquiriram esse direito por disposição constitucional, sendo difícil extingui-lo.

                       Circunstâncias preventivas de greves, contudo, seria o oferecimento de dignas condições remuneratórias e de trabalho, o que nem sempre é suficiente, porém, quando o pleito tem ligação com o protesto contra uma gestão deficiente, por exemplo.

                       Por outro lado, embora um dos argumentos para a existência de mais de uma polícia é o de que possam cobrir as atividades uma da outra, mutuamente, em períodos de greve, é possível estabelecer mecanismos de substituição nessas situações, como, por exemplo, nos casos de intervenção e estados de emergência (estado de defesa e estado de sítio).

                       Nesse sentido, seria aplicável a atuação das Forças Armadas, no âmbito de suas atividades subsidiárias previstas na Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, que dispõe sobre as normas gerais para sua organização, preparo e emprego. Com efeito, em seu art. 15, ao disciplinar o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, o mencionado diploma prevê a substituição da força policial indisponível, situação que pode se aplicar, com justeza, a um eventual movimento paredista pleno, ou quando insuficiente, na hipótese de greve parcial.[36]

                       A exemplo do que ocorreu com as guardas municipais, cujo Estatuto, aprovado pela Lei nº 13.022, de 8 de agosto de 2014, estabelece efetivo máximo (art. 7º), seria adequado que as polícias tivessem definidas as respectivas ‘taxas de enquadramento policial’ (TEP) ou de densidade policial (police density ratio) máxima e mínima em relação à população.[37] O efetivo mínimo, especialmente, é pressuposto de que as atividades teriam continuidade, com um razoável padrão de efetividade, visto que atualmente, não obstante as questões de escala mencionadas, os efetivos em geral são insuficientes para o provimento do serviço policial de qualidade.

                       Outro ponto relevante diz respeito ao controle interno e externo, que se relaciona, de certa forma, com a criação do conselho constitucional apopriado. Assim, a criação de corregedorias e ouvidorias de polícia poderia prever pessoal com carreira exclusiva e ser integrado por representantes da sociedade, nos moldes do sistema britânico.[38] Tais órgãos exerceriam o controle externo social, de caráter teleológico, sem prejuízo do controle externo de legalidade, atualmente atribuído ao Ministério Público, além do controle interno próprio de cada polícia.

                       No âmbito da efetividade da prestação do serviço policial, ainda, as premissas dos controles não dispensam outra consideração de ordem prática. Tendo em vista vigorar na esfera federal o chamado presidencialismo de coalizão, no qual o chefe do Poder Executivo deve barganhar apoio de um parlamento multipartidário para garantir a governabilidade, esse sistema é repercutido nas demais instâncias federativas. Dessa forma, as polícias sofrem ingerências políticas que interferem em sua forma de atuação e mesmo na necessária neutralidade de que devem se revestir.

                       Uma das soluções apontadas é garantir a inamovibilidade do delegado de polícia, a exemplo de garantia similar conferida aos membros da magistratura e do Ministério Público. Outra solução seria o estabelecimento de mandato para o chefe de polícia[39], para que o órgão atue com relativa autonomia e independência, obedecendo apenas a ditames legais e programáticos transparentes.

4  CONCLUSÃO

                        Não obstante as experiências havidas em relação ao termo circunstanciado, não houve caso de aplicação plena da atividade de polícia na modalidade de ciclo completo no País. O caso que mais se aproxima, em termos de órgão policial que executa o ciclo completo, é o do Departamento de Polícia Federal (DPF), que a par de não exercer a prevenção no tocante a todos os espectros criminais que reprime, sua atividade preventiva não tem o mesmo modus operandi da atividade congênere exercida pelas polícias militares. Outros órgãos policiais que executam o ciclo completo são as polícias legislativas, mas sua atuação tem caráter edilício e, portanto, não se presta à comparação com a atuação das polícias militares.

                        As propostas apresentadas, contudo, se resumem a quatro, que analisaremos a seguir:

                       1) todas as polícias executariam o ciclo completo plenamente;

                       2) as polícias civil e militar executariam o ciclo completo em base territorial diversa, isto é, em razão do local (ratione loci);

                       3) as polícias civil e militar executariam o ciclo completo em relação a crimes específicos, ou seja, em razão da matéria (ratione materiæ); e

                       4) a polícia militar executaria o ciclo completo em relação aos crimes de menor potencial ofensivo e aos casos de flagrante.

                        No primeiro caso teríamos a situação menos recomendável. Seriam duas polícias executando as mesmas atribuições no mesmo território, isto é, uma duplicação de esforços que poderia redundar em dois desdobramentos possíveis e indesejáveis. Num sentido, em sobreposição de tarefas e, portanto, desperdício de recursos; noutra óptica, no fenômeno da difusão da responsabilidade, quando um órgão espera que o outro cubra determinada subárea, foque determinada subespécie criminal ou atue em determinado subperíodo específico e nenhum dos dois o faça, deixando um vácuo perigoso, em prejuízo da sociedade.

                       A dificuldade maior seria alocar – depois de razoável treinamento – parcela considerável da polícia militar para a atividade investigativa e judiciária, visto que no Brasil as polícias civis possuem trinta por cento do efetivo das polícias militares, na média. O deslocamento de cerca de trinta por cento dos policiais militares para as atividades de repressão nas localidades com efetivo mínimo comprometeria a atividade local de policiamento ostensivo-preventivo. Por derradeiro, esse modelo significaria a extensão do ciclo completo apenas às polícias militares, na prática, visto que as polícias civis não possuem efetivo suficiente sequer para sua atividade ordinária, quanto mais para atuar preventivamente.

                        A segunda modalidade, de base territorial, busca inspiração no modelo francês, em que a Police Nationale atua nas cidades maiores e a Gendarmerie nas menores e nas zonas rurais. Haveria mesmo a coincidência de estrutura, isto é, civil e militar, respectivamente, à semelhança dos órgãos brasileiros. Nessa hipótese a sugestão apresentada é que a polícia militar atuasse nas grandes cidades, restando à civil exercer suas atribuições nas pequenas, o que se mostra no mínimo insensato.

                       A mesma fundamentação que atribui capilaridade às polícias militares vai de encontro à proposta, visto elas estarem presentes nos mais distantes rincões, estando as polícias civis disponíveis apenas nas cidades maiores. Não haveria como deslocar efetivos já menores – e em geral escassos – das polícias civis para todas as pequenas cidades, vilas, povoados e distritos.

                       Ainda que se considere possível, no longo prazo, que um efetivo menor desse cabo do policiamento de locais pacatos, eis que a polícia militar herdaria um considerável passivo de inquéritos policiais inconclusos, que se avoluma nas grandes cidades, acossadas pela incidência criminal proporcionalmente incrementada. Destarte, aglomerações urbanas mais adensadas exigem um policiamento ostensivo mais visível, já que impraticável o preventivo propriamente dito, de feitio comunitário. Neste aspecto, pode-se inferir que o aporte de policiais militares oriundos do interior suportasse a carga adicional de polícia investigativa e judiciária.

            Entretanto, nos dois casos, tanto no de alocação de policiais militares do interior para as grandes e médias cidades, como no de policiais civis para as pequenas, haveria difícil acomodação de interesses pessoais dos policiais, como vinculação com as comunidades, emprego do cônjuge, escolas dos filhos, patrimônio eventualmente localizado na cidade em que residem e outras contingências variadas. Embora o interesse público ou institucional deva prevalecer, é inequívoco que os fatores citados interferem na motivação do policial, levando, quiçá, muitos a solicitarem aposentadoria precocemente ou, no limite, mesmo solicitar exoneração da força policial.

                        No caso da terceira proposta, de divisão do trabalho fundado em base material, por tipo de crime, teríamos situação semelhante à primeira e aparentada à situação atual. Assim, o risco de ocorrência de áreas de sombra e de responsabilidade difusa também existiria, bem como o da sobreposição de competências, como ocorre atualmente. Já se propôs que caberia às polícias militares os crimes contra o patrimônio e às civis os crimes contra a pessoa e os demais crimes previstos no Código Penal e leis extravagantes. Em certa medida, boa parte dos crimes que geram prisões em flagrante são aqueles contra o patrimônio.

                       Variante da proposta é que as polícias militares seriam responsáveis pelos crimes de menor potencial ofensivo, cabendo os demais à polícia civil. Essa hipótese se aproximaria da situação atual nos Estados em que a polícia militar foi autorizada a formalizar o TC. Novamente se trataria da extensão do ciclo completo em relação aos crimes cuja repressão fosse atribuída às polícias militares, sem correspondência nas polícias civis no aspecto da prevenção. Estas teriam dificuldade de prevenir – além de reprimir – crimes de maior ofensividade, em razão do baixo impacto na liberação de eventual efetivo dos plantões, responsáveis por registro de ocorrência e lavratura de flagrantes. Tal circunstância poderia causar relativa anomia em relação aos crimes mais graves, ou, o mais provável, a continuidade de sua prevenção por parte das polícias militares.

                        A quarta opção é uma variante da terceira, com o acréscimo das situações de flagrante delito de qualquer crime, que também ficariam a cargo das polícias militares. A justificativa é que nesses casos não há o que apurar, pois todos os elementos que caracterizam a infração penal – materialidade, autoria e eventuais circunstâncias – estariam provadas, sejam as de caráter objetivo (corpo de delito), sejam as de caráter subjetivo (testemunhos, relato da vítima, confissão do autor), pelas evidências presentes no evento.

                        São válidas as mesmas ponderações relativas à terceira opção, portanto, inclusive as relativas à similaridade com a primeira.

                        A adoção de tais modalidades de ciclo completo, porém, sem a faculdade de se ir além da integração para verdadeira unificação das forças policiais, ainda que mediante processo paulatino e seguro, configura paliativo de duvidosa eficácia. Sem essa providência, aliás, defendida pelos delegados de polícia, o ciclo completo consistirá apenas em arregimentação de mais poder para as polícias militares.

                       A adoção do ciclo completo, mantendo-se as estruturas atuais implica mais tarefas com o mesmo efetivo. Menos eficácia, portanto. Na prática é estender o ciclo completo apenas para as PM, que possuem maior efetivo, pois as PC não terão como executar o policiamento ostensivo. Ao fim e ao cabo as invasões de competência continuarão, pois, ciclo completo para duas polícias que atuam no mesmo território só faz sentido se houver divisão material da competência, visto que a divisão territorial é impraticável.

                        Consistiria, ainda, em verdadeira subversão do princípio da especialização que informa a dualidade ora existente. Enfim, não faria sentido que essa especialização, atualmente interinstitucional, se transmudasse numa generalização interinstitucional, em vez de uma especialização intrainstitucional, mediante a departamentalização do órgão conforme as necessidades de segmentação das atividades.

                       O exemplo federal, em que o Departamento de Polícia Federal (DPF) e o Departamento de Polícia Rodoviária Federal (DPRF) fazem prevenção, não é inteiramente aplicável à hipotética situação em que duas polícias estaduais fossem responsáveis pela repressão. A repressão só existe onde a prevenção falhou ou não foi executada por qualquer razão. Duas polícias reprimindo subtrairiam recursos humanos valiosos à atividade primordial, portanto, a prevenção. O ideal, então, seria uma só polícia, com departamentos distintos de prevenção e repressão, com ênfase na prevenção e possibilidade de intercambiamento de atribuições aos integrantes dessa polícia, de modo que a proporção entre os efetivos dos segmentos preventivo e repressivo pudesse variar segundo a necessidade empiricamente observada.

                       É inquestionável, porém, que o escorreito enquadramento do fato da vida ao fato típico não é uma operação simplória e facilmente apreensível por um policial recruta sem qualquer noção de direito processual. Assim, se o bacharelado em Direito é tido como um exagero que vincula a carreira de delegado de polícia, o desconhecimento das formalidades jurídicas exigidas pelos diplomas processuais, isto é, rudimentos de Direito que pelo menos os oficiais possuem, é um risco a que estaria sujeito o suposto infrator e, por conseguinte qualquer pessoa, isto é, toda a sociedade.

            Ainda que se admita a legitimidade da requisição de exames periciais por policiais militares; do arbitramento da fiança, sua dispensa ou redução; e a extensão do conceito de autoridade policial para os fins de produção da prova, indiciação, representação por medidas cautelares diversas e até mesmo a imposição dos constrangimentos legais, incluindo a restrição da liberdade propriamente dita, há de estarem tais faculdades e deveres consubstanciados na norma processual. Mesmo tais disposições, contudo, carecem da prévia alteração da competência constitucionalmente definida.

                       Entendemos que a elaboração do TC poderia, por disposição legal, ser deferida à polícia militar – e, por extensão, ao DPRF – naqueles casos em que estejam plenamente configuradas a materialidade e autoria, bem como quando não haja dúvidas acerca da subsunção da conduta ao fato típico. Em homenagem aos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade que informam os procedimentos vinculados à Lei nº 9.099/1995, parece não haver justificativa para tornar complexo algo que deva ser simples.

                       Entretanto, restando qualquer dúvida, carecendo a situação fática de análise mais aprofundada visando à correta tipificação penal, ou, ainda, sendo necessária qualquer investigação preliminar ou complementar para cabal esclarecimento do evento, a prudência recomenda que a polícia civil assuma o caso.

                       A fim de atender ao pleito dos policiais militares que emulou a busca pelo ciclo completo, que é a lavratura do TC, a justificativa que entendemos plausível para a prorrogação dessa competência pela lavratura do TC à PM e adoção de outras medidas correlatas inadiáveis é aquela acerca da inexistência de órgão policial civil no local e de delegado de polícia disponível no horário do evento, o que pode ser objetivamente comprovado.

                        Uma das providências que tornaria o serviço policial mais efetivo, reduzindo ou eliminando o retrabalho seria a adoção de um boletim único de ocorrência a ser elaborado pelas polícias civil e militar, nos termos do que foi implantado no Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, onde isso ocorre desde o ano de 2000, por força de termo de cooperação celebrado entre o Governo do Estado do Rio Grande do Sul e o Ministério Público Estadual. Além de ser valioso fator de integração, a medida facilita a alimentação dos bancos estatísticos pertinentes à segurança pública.

                       A adoção de terminologia uniforme dos eventos e numeração única das ocorrências, que pudesse seguir o inquérito policial, o processo criminal e que vinculasse a estes o corpo de delito pertinente, seria medida altamente preventiva de erros, inconsistências e condutas irregulares em relação aos delitos em geral. Tais medidas simples, entre outras dezenas que podem ser adotadas, estimulariam a redução da taxa de atrito, em decorrência de seu perfeito conhecimento, assim como as inconsistências, os erros, o retrabalho, permitindo a existência de bancos de dados depurados que subsidiassem a adoção de políticas públicas consistentes, duradouras e exitosas.

 

REFERÊNCIAS

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SILVA, Jorge da. Segurança pública e polícia: criminologia crítica aplicada. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

 



[1] Sobre unificação das polícias nos permitimos recomendar a leitura do estudo “Unificação das polícias civil e militar”, de nossa autoria, no qual discorremos, também, sobre modelos de polícia, ciclo completo e avaliação do trabalho policial.

[2] Convencionou-se chamar ‘ciclo completo’ a execução das atividades de prevenção, ou polícia ostensiva, e repressão, ou polícia investigativa, pela mesma força policial.

[3] A esse respeito nos permitimos indicar a leitura do artigo “Mandato e escolha do chefe de polícia”, de nossa autoria.

[4] Antes que se diga serem os gendarmes militares e, portanto, conforme se argumenta, que a polícia militar estaria preparada para o ciclo completo, adiante-se que a ação referida é facilitada pela circunstância de atuação na área rural, onde os laços comunitários são mais estreitos, bem como pela obrigação de o gendarme residir, com sua família, na área de atuação (LÉVY, 1997).

[5] Observação no original.

[6] Consignado apenas o primeiro subscritor da proposição.

[7] O teor das normas legais está disponível no portal da Presidência da República na internet (<www.planalto.gov.br>). Optamos por não trazer a referência de cada norma no presente trabalho.

[8] O teor das proposições legislativas, sua tramitação e documentos correlatos estão disponíveis no Portal da Câmara dos Deputados (<http://www2.camara.leg.br/>) e no Portal do Senado Federal (<http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias>).

[9] Nesse tocante lamenta-se a inexistência no diploma processual pátrio, de regras concretas acerca das atribuições do primeiro policial a comparecer a local de infração penal, o que é deixado ao alvedrio das corporações, cujos normativos não possuem coercibilidade equivalente à de uma lei.

[10] Embora se diga que a polícia federal execute o ciclo completo, a fase de prevenção é difusa, salvo a prevenção geral, não obstante ser prevista no inciso II do § 1º do art. 144. A polícia rodoviária federal, sim, faz o policiamento preventivo, não tendo, porém, a competência repressiva mediata, o que denota haver entre elas, em termos gerais, a mesma dicotômica atribuição parcial.

[11] Mesmos as polícias de caráter militar atuam à paisana nas funções de informação ou inteligência. No Brasil, as seções de informações das polícias militares (PM2) e dos corpos de bombeiros militares (BM2) atuam dessa maneira, às vezes invadindo a competência das polícias civis, a título de fazer prevenção pelo desbaratamento de quadrilhas. No entanto, só poderiam fazê-lo legalmente durante a investigação de crimes militares.

[12] Não obstante, há casos em que há sobreposição de competências.

[13] Dados mais modestos dão conta de que há, naquele país, entre catorze mil e dezessete mil órgãos, conforme o critério que se utilize para definir quais se enquadram na definição de organismo policial.

[14] Vide a análise que Melim Júnior faz a esse respeito em sua monografia (MELIM JÚNIOR, 2002, p. 166 e seguintes).

[15] No dizer de Rondon Filho (2003) “A taxa de atrito é o indicador utilizado para se medir o percentual de perda que ocorre em cada instância do Sistema de Justiça Criminal, a partir do número de crimes cometidos, culminando com o número de infratores que recebem uma pena de prisão, sendo comprovado em outros países que quanto mais fases existirem maior será a taxa de atrito, ou seja, mais crimes deixarão de ser resolvidos. A unificação do ciclo policial excluirá uma fase, podendo com isso diminuir a taxa de atrito” (RONDON FILHO, 2003, p. 74).

[16] Os oficiais da PM avaliam que o tempo de resposta é prejudicado pela demanda reprimida, isto é, as ocorrências não comunicadas à polícia ou que não são atendidas (RONDON FILHO, 2003, p. 65).

[17] Segundo documento produzido pela Polícia Civil do Distrito Federal, a taxa de resolução de homicídios por aquele órgão, numa série de dez anos (2003-2014), apresentou uma média de 68%, tendo atingido o ápice de 82% em 2005 e seguindo tendência de baixa nos últimos anos, atingiu 51% em 2014 (DISTRITO FEDERAL, 2015).

[18] O modelo comum nos anos sessenta e setenta nos Estados Unidos era baseado nos três R: rapid response (rápida resposta), random patrols (patrulhamento aleatório), reactive investigation (investigação reativa).

[19] Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.

[20] Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. (Redação dada pela Lei nº 9.043, de 9 de maio de 1995, que alterou o termo ‘jurisdições’ para ‘circunscrições’). [sem destaques no original]

[21] O policiamento comunitário pressupõe as rondas pela vizinhança (a pé, a cavalo, de bicicleta) em substituição ao patrulhamento veicular motorizado (automóvel, motocicleta). O patrulhamento motorizado pode ser reativo – por demanda dos cidadãos, geralmente mediante acionamento de uma central de despacho – ou com características preventivas, por escala fixa em dias e horários específicos ou, ainda, inopinada, aleatória (randômica) ou por amostragem, a mais comum.

[22] O chamado policiamento comunitário normalmente é conhecido pela sigla PIP-COM, de Policing Intervention/Community Policing Plan.

[23] A exemplo das ingerências das PM2 e BM2 as polícias civis executam policiamento preventivo por meio das unidades táticas, tais como: COE/Centro (Centro de Operações Especiais), da Polícia Civil do Estado da Bahia; COPE (Complexo de Polícia Especializada), da Polícia Civil do Estado de Sergipe ou como Centro de Operações Policiais Especiais, da Polícia Civil do Estado do Paraná; CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais), da Polícia Civil do Estado de Pernambuco e da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro; COT (Comando de Operações Táticas), da Polícia Federal; DOE (Divisão de Operações Especiais), da Polícia Civil do Distrito Federal; FERA (Força Especial de Resgate e Assalto), da Polícia Civil do Estado do Amazonas; GARRAS (Grupo Armado de Repressão a Roubo a Banco e Resgate a Assaltos e Sequestros), da Polícia Civil do Estado de Mato Grosso do Sul, ou no singular, GARRA (Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos), da Polícia Civil do Estado de São Paulo; GER (Grupo Especial de Resgate), da Polícia Civil do Estado de São Paulo; GERB (Grupo Especial de Repressão e Buscas), da Polícia Civil do Estado de Sergipe; GOE (Grupo de Operações Especiais), da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso, da Polícia Civil do Estado da Paraíba e da Polícia Civil do Estado de Pernambuco, ou como Grupo de Operações Estratégicas, da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais, Grupamento de Operações Especiais, da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, ou Grupo de Operações Especiais, da Polícia Civil do Estado de São Paulo; GOT (Grupo de Operações Táticas), da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo; GRR (Grupo de Resposta Rápida), da Polícia Rodoviária Federal; GPE (Grupo de Pronto Emprego), da Polícia Civil do Estado do Pará; GT3 (Grupo Tático 3), da Polícia Civil do Estado de Goiás; TIGRE (Tático Integrado de Grupos de Resgate Especial), da Polícia Civil de Alagoas, ou Tático Integrado de Grupos de Repressão Especial, da Polícia Civil do Estado do Paraná; e UTO (Unidade Tática Operacional), da Polícia Civil do Estado do Ceará. Percebe-se que praticamente todos os Estados criaram sua força uniformizada de polícia civil que, à falta de missão tática, faz policiamento preventivo. As denominações são curiosamente criadas para que permitam o conhecimento por uma sigla de impacto, são grafadas nas viaturas em grandes letras emolduradas por símbolos coloridos como as próprias siglas sugerem (tigre), emulando o poder de ataque fulminante (águia, escorpião) ou, ainda, o símbolo escatológico da caveira, muito utilizado por unidades táticas das polícias militares.

[24] Exemplos de polícia unificada e de ciclo completo são as polícias legislativas, que funcionam, não obstante o pequeno efetivo e o âmbito meramente edilício de atuação, ou seja, suas competências não vão além das áreas edificadas ou sob administração das respectivas casas legislativas.

[25] Alguns autores preferem o termo ‘indiciamento’, embora indiciação seja mais utilizado, também, no processo administrativo disciplinar. O Dicionário Eletrônico Houaiss registra indiciamento, mas diz que é o mesmo que indiciação. Depois considera que indiciação é “ação ou efeito de indiciar; indiciamento” e “fornecimento de indício(s); indicação”. Diz ainda que se trata de “revelação de falta ou erro; acusação, denúncia” e, como termo jurídico, “submissão a inquérito criminal ou administrativo”. Assim, tudo indica que o termo preferível é indiciação, embora a palavra indiciamento seja igualmente correta.

[26] Um exemplo do uso das denominações dos cargos de natureza militar por órgãos de natureza civil encontra-se nos Estados Unidos, onde as polícias têm três cargos básicos com a taxionomia propriamente militar: capitão, tenente e sargento.

[27] Transformação semelhante ocorreu quando a Força Pública foi substituída pela Polícia Militar e a Guarda Civil pela Polícia Civil, no Estado de São Paulo, modelo que foi incorporado pelos demais Estados.

[28] A possibilidade de criação desse conselho constitucional tem precedente na criação do CNJ (art. 103-B) e do CNMP (art. 130-A). Sugere-se que deveria possuir poder normativo e consultivo, a exemplo do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), criado pela Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro – CTB (art. 7º).

[29] Proposta de Emenda à Constituição.

[30] Abordamos essa questão na Nota Técnica “Bico – considerações sobre a atuação de policiais na segurança privada”, ainda não publicada.

[31] Há no anedotário policial, inclusive, a estória do governador que dizia aos policiais: “eu lhes dei o distintivo e a arma, façam seu salário”.

[32] Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a “investigar a ação criminosa das milícias privadas e dos grupos de extermínio em toda a Região Nordeste”, que funcionou de 2003 a 2005.

[33] Recrutamento exógeno é aquele a que todos os cidadãos que satisfaçam os requisitos do edital do concurso podem se candidatar. Endógeno é o recrutamento a que apenas os integrantes da força concorrem.

[34] Os ‘servidores públicos’ e os ‘militares’ eram denominados ‘servidores públicos civis’ e ‘servidores públicos militares’, na antiga redação das epígrafes que encabeçam os arts. 39 e 42 da Constituição, respectivamente, alteradas que foram pela Emenda Constitucional nº 18 de 1998.

[35] Trata-se dos peritos oficiais de natureza criminal, que inclui peritos criminais, peritos médico-legistas e odontolegistas. De outra categoria de peritos, os papiloscopistas, não se exige formação acadêmica específica.

[36] “Art. 15. (...) § 2o A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal. § 3o Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional. (Incluído pela Lei Complementar nº 117, de 2 de setembro de 2004) (...)” [sem destaque no original]

[37] Não confundir com ‘taxa de enquadramento hierárquico’ (TEH), razão entre o número de pessoas que conduz um grupo de subordinados e o número destes, comumente utilizando-se o denominador 10 e considerando-se ótima a relação até 2/10 ou 1/5 = 0,2. Um valor abaixo disso é considerado subenquadramento, por exemplo, 1/10 = 0,1 (MONET, 2006, p. 110). A TEH pode ser proporcionalmente menor desde que haja menor número de tarefas a serem executadas pelo grupo. Bittel (1982) considera razoável a equipe de um supervisor para cinco a sete subordinados. As polícias militares possuem uma maior TEH que as polícias civis, razão porque seus integrantes ficam muito mais sujeitos à supervisão direta, especialmente a de primeira linha, isto é, na base.

[38] Órgãos colegiados formados por representantes das polícias e da sociedade civil, estes eleitos, cuja finalidade é definir os rumos da atuação das polícias, tanto no aspecto da alocação e aplicação dos recursos, como das prioridades, métodos e resultados.

[39] Em alguns Estados a função é chamada ‘delegado-geral’.

(Estudo elaborado em setembro de 2016)

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